segunda-feira, 19 de junho de 2017

Jesus Camisa 10

Jesus foi um jogador de futebol nascido na cidade de Nazaré. Meio campista, perna esquerda, aos 12 anos começou jogando no sub-15 do modesto Apóstolos de Nazaré, um time da segunda divisão Nazarina. Sem demonstrar muita habilidade, o que era esperado dele por ser um canhoto, ganhou o apelido de “Perna de Pau”, muito em função da profissão de seu pai, que era marceneiro.

José adotara Jesus como seu filho, logo após descobrir que sua então namorada, Maria, a garota pura que se guardava para o casamento, inesperadamente aparecera grávida, dizendo ter sido utilizada como instrumento por Jeová, e que o seu filho seria, no futuro, uma estrela.

Jesus, que desde cedo se apegara ao pai adotivo, queria fazer de tudo para que o desejo de José fosse realizado. Assim, ciente de que não possuía os genes de um craque em si, apesar de a mãe viver repetindo que ele era filho de um deus, tomou para si a missão de treinar o quanto fosse necessário para se tornar um jogador profissional, realizando o sonho de seu pai.

Nos intervalos das aulas, na Escola Municipal Judaica de Nazaré, Jesus treinava faltas, controle de bola, embaixadinhas, tudo sob os olhares irônicos de seus colegas que, a cada erro do craque em treinamento, gritavam “Perna de Pau”. Jesus se tornou um obstinado. Treinou dia e noite, na chuva, no frio, no sol, na terra, na grama, anos depois, alguns diziam ter visto Jesus treinando até sobre a água. E então, depois de ser afastado do time sub-18 do Apóstolos de Nazaré, Jesus foi visto, nos campos de várzea da cidade-Estado, por um olheiro de um time de uma cidade vizinha, que o convidou a fazer um teste no clube.

Aos 18 anos, Jesus assinava com o Cristal de Belém, um time da primeira divisão daquela cidade, e recebia a camisa 10 do time.

No campeonato daquele ano, Jesus foi artilheiro e o craque escolhido pela revista “Profetas da Bola”. Logo despertou interesse nos dirigentes da seleção Belenzina, que propuseram a Jesus a obtenção da cidadania local para que disputasse a Copa Galileia por Belém.

Feliz com a sondagem, Jesus denegou em um primeiro momento, afinal, filho de Nazaré, queria disputar uma Copa por sua cidade natal, já que era também o sonho de José.

No entanto, a seleção de Nazaré contava com o melhor jogador do mundo à época, que jogava na posição de Jesus, uma posição de titularidade só viria com uma possível contusão do craque. Além disso, o técnico da seleção nazarina nutria certo desprezo por Jesus, principalmente pelo fato de ser filho adotivo, fruto de uma relação extraconjugal. Perguntado sobre a situação de Jesus, que não era convocado, mesmo em grande fase, o técnico Abrão Jr. comentou “Aqui nós respeitamos os valores morais e a família nazarina. Nunca aceitarei bastardos no meu time”.

Triste com a situação, Jesus levou o convite belenzino aos ouvidos dos seus pais, que se encheram de esperanças e indicaram ao filho que ele deveria aceitar. Maria repetiu o mantra de que o filho estava predestinado a grandes coisas e que o mundo ainda seria dele. Então, um ano antes da Copa da Galileia, aos 20 anos, Jesus recebia o seu título de cidadão de Belém e integrava, já dois depois, a seleção num amistoso contra a Judeia.

Naquele jogo de estreia, Jesus marcou dois gols, deu passe para outro e foi escolhido o jogador da partida. E assim começou uma carreira de sucesso, com vitórias e conquistas, até que, anos mais tarde, em sua terceira Copa da Galileia, com um título e um vice na bagagem, Jesus enfrentaria o dilema de sua vida. Nazaré vinha forte para a Copa daquele ano e, pela primeira vez desde que Jesus assumira a cidadania belenzina, a sua seleção não era a favorita. Muitos diziam ser certo uma final entre Belém e Nazaré. Os jornais da época só falavam disso. E não pararam de falar até o início da Copa do ano seguinte.

Aos 33 anos, Jesus já não era o mesmo garoto que ganhou fama por sua determinação e velocidade, mas, inteligente, ainda mantinha seu faro de gols e seu passe preciso aliado a um controle de jogo incomuns. Naquela Copa, o time comandado por Jesus vinha de resultados expressivos e tinha como titulares o goleiro Simão, os zagueiros André e Tiago, os laterais Filipe e Bartolomeu; no meio os volantes Mateus e Tomé, com Jesus e João na articulação e na frente, fechando o 4-4-2, Tadeu e Judas.

Antes de cada jogo, Jesus, em coletivas, dava os palpites de como seriam os jogos, no que acertava invariavelmente. Em razão desse fato, a imprensa o apelidou de “Jesus, o Profeta”. Como costumavam dizer que a seleção belenzina era composta por Jesus e mais Dez, o time passou a ser chamado de “Dezcípulos de Jesus”.

Nos preparativos para o primeiro jogo, Jesus sentiu um desconforto no joelho esquerdo e foi poupado de alguns treinos. No primeiro jogo, ficou no banco, entrando no segundo tempo para só garantir, com mais um gol, a vitória tranquila por 3-0 sobre a seleção da Caninéia. Na segunda rodada, entrou como titular, na vitória por 2-1 sobre Edom. Na terceira rodada, com a classificação antecipada, o time titular foi poupado, no empate em 2-2, diante de Siquém.

Nas oitavas, Belém enfrentou Babel, que, mesmo com um time desorganizado, que aparentava não se entender em campo, graças aos talentos individuais. Belém classificou-se com um 5-2, tranquilo, em brilhante atuação de Jesus. Tranquila também foi a classificação pra a semifinal, com um 4-0 sobre a seleção de Harã. Nas semifinais, Belém enfrentaria a forte seleção de Hebrom.

Do outro lado da chave, Nazaré vinha atropelando seus adversários com sonoras goleadas. A imprensa, e todo mundo que não eram os adversários de Belém e Nazaré nas semi, vibrava com a possibilidade da final das finais.

Jesus via a chance de enfrentar a seleção de sua cidade natal bem próxima. Aos 28 minutos do segundo tempo, o placar marcava 2-0 para Belém. Num contra-ataque rápido de Hebrom, Judas, voltando para ajudar na marcação, comete falta no meio campista adversário, o árbitro, distante, não vira o lance, marcou a falta e puxou o cartão amarelo. Judas, que já tinha cartão, ao notar que o árbitro estava confuso sobre o autor da penalidade, apontou Jesus como sendo o infrator. O árbitro apontou para Jesus, que conversava com o técnico, e mostrou o amarelo. Um silêncio tomava conta do estádio.

Com aquele amarelo, o terceiro na fase final, Jesus estava fora da tão esperada final, era um balde de água fria na cabeça dos fiéis ao bom futebol. Jesus estava desolado. O time todo partiu para cima do árbitro e, depois, para cima de Judas. Não havia o que fazer. Jesus ainda deu passe para mais dois gols, e o jogo terminou em 4-1. Do outro lado, Nazaré fazia 6-0. A grande final aconteceria, sem a presença do personagem principal.

Inconformada, a diretoria de Belém acionou seu corpo jurídico já ao final do jogo, e protocolaram uma petição junto ao organizador, pleiteando a análise do caso, com efeito suspensivo da punição a Jesus. Era um pedido desesperado, já que a entidade nunca havia aceitado pedido do tipo, fundamentando que a decisão do juiz do campo era soberana. Só um milagre salvava.

As semifinais estavam terminadas, a final definida. Na sexta-feira pela manhã, o dia seguinte às semi, o tribunal julgador da organização recebeu o pedido dos advogados de Belém. Marcaram julgamento excepcional para o sábado.

No sábado, porém, o julgamento foi prorrogado, já que haviam esquecidos que, judeus que eram, não poderiam julgar no sábado. O julgamento ficara para o domingo, horas antes da partida decisiva.

Nesse meio tempo, desde a saída da semifinal, Jesus não fora visto. Não passara pela zona mista do estádio, encontrava-se recluso. A imprensa não sabia dele. Os dirigentes, a comissão técnica, a assessoria de imprensa da seleção belenzina não se pronunciava sobre.

Domingo, 10 horas da manhã, 8 horas para o jogo, a comissão julgadora se reúne para julgar o pedido de suspensão da punição a Jesus. Na concentração, Jesus continuava sendo procurado pelos jornalistas, sem sucesso.

Meio dia: a sessão de julgamento é suspensa para o almoço. Após problemas com dois dos julgadores, o julgamento é retomado às 14 horas. 4 horas para o jogo.

Intensos debates, o julgador de Nazaré tenta pedir vista, o que impediria a decisão naquele dia. Outros rebatem o pedido. Intervalo proposto pelo presidente da comissão, após insultos trocados pelos membros.

16:30h: os ônibus de Belém e Nazaré saem de seus hotéis rumo ao estádio. Jesus não fora visto entrando no ônibus da seleção belenzina. Seu paradeiro ainda é incerto. Poucos minutos depois o julgamento é retomado.

17h: os jogadores sobem ao gramado para o reconhecimento prévio e aquecimento. Jesus não está entre eles. O presidente da comissão de julgamento de preparada para anunciar o resultado da votação acerca do recurso.

17:15h: os jogadores voltam ao vestiário. Da próxima vez que aparecerem no gramado será em definitivo para a final. Na comissão de julgamento, mais confusão e atraso.

18h: a final começa sem Jesus. O primeiro tempo é dominado por Nazaré que abre 2-0.

18:38h: após mais confusão, a decisão sai. Jesus é absolvido, Judas é suspenso por 8 jogos, por atitude antiética.

18:45h: fim do primeiro tempo. Belém vai ficando com o segundo vice na era Jesus.

19h: os times sobem ao gramado para o segundo tempo. Á beira do campo, um jogador se aquece. Barbudo, cabeludo, ao tirar o colete a torcida vibra. Jesus, desaparecido três dias antes, após a semifinal, volta e entrará em campo.

Com dois gols antes dos 15 minutos, um deles de Jesus, Belém dissipa a vantagem de Nazaré. O jogo segue parelho até os 43 minutos. Jesus pega a bola na intermediária, avança contra a marcação, deixa um para trás, tabela com João, que toca para Bartolomeu. Ele dribla o lateral adversário, faz o passe para trás. Jesus domina dentro da área, dá um chapéu no zagueiro e fuzila de perna esquerda para o gol do título. É a consagração do profeta.

Festa em Belém!

Na comemoração, Jesus anuncia sua aposentadoria. Explica que já está velho demais para isso tudo e que não aguentaria mais uma Copa. “Se for pra ficar pregadão no meio, eu prefiro não jogar”.

Anos depois, o técnico que barrou Jesus na seleção de Nazaré reconheceu o talento do craque, com ressalva: “… mas ainda é um filho bastardo”.


FIM.

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