quinta-feira, 29 de junho de 2017

Solidão

Solidão. Eis, talvez, o grande atributo da humanidade.

Que saudades de um cigarro que sinto quando penso nisso.

Não. Não na solidão. Na humanidade.

O cigarro, talvez, tenha sido o maior estandarde da solidão humana. Vivíamos épocas sombrias. Éramos reflexivos. Reunião era custosa. E o cigarro pairava sublime como o grande herói da geração. Geração Hollywood. Marlboro. Free. Eu, confesso, não fui dessa geração. O cigarro me caiu no colo como um remédio contra a solidão. Todo mundo fumava. Existia o intervalo pro cigarro. Eu trabalhava. E trabalhando percebi que o melhor era fumar. Tolo. E fumei. E logo estava integrado no todo, nos maiorais. Eu estava entre as cabeças pensantes e pulmões fumantes da empresa. Cresci rápido.

E logo percebi que não era pelo crescimento que fumei. Era pelo medo da solidão. E por temer a solidão, percebi que a resposta a esse medo me dava mais e mais conforto com o próprio medo. Passei a me sentir bem na minha presença. Desde que junto a um maço, ou dois, de cigarro. Do mais forte. Tragava pouco. Sério. Mas era o sabor que me embriagava (ainda mais, porque sempre estava acompanhado de alguma boa dose de álcool). Então vi que conseguia escrever muito mais. Viajar muito mais. Refletir sobre o todo mais do que quando estava sem.

Cigarro e álcool passaram a ser não só amigos, mas cúmplices. Eles mitigavam os motivos, os meandros, os detalhes. Eu só transcrevia o que me diziam. Era mero instrumento das suas vontades escusas. E sob efeito deles amei quem eu achei que amava, e escrevi dezenas e dezenas de verborrágicos versos. E chorei sobre amores imaginários. Sofri com fins imagináveis. Fiz-me absolutamente ridículo em uma ou mais ocasiões. Tudo por que eu inventava, no auge de meu surto “alcoolnicotínico”, relacionamentos de mão dupla, que só existiam na via de mão única do meu desespero. Era a solidão não se reconhecendo.

Demorei diversos e diversos fracassos para perceber que a solidão é medida que se impõe, e a vida nada mais é que uma toda solidão, permeada de momentos de companhia agradável (bem raros).

Reconheci-me, tardiamente, solitário. E quando, enfim, assim me vi, por infelicidade (que seja) do destino, vi-me de frente a uma possibilidade de fim da solidão. Não a aceitei. Embora achasse que sim. E fui vivendo a incongruência do estar em e estar fora. Entre a solidão e o amor. Entre a dor do só e a dor compartilhada do companheirismo. Não soube lidar. Não sei.

Em mim ainda paira essa máxima da solidão como bem único. Somos solitários. Nascemos assim. Morreremos assim. O resto do tempo é encontrar aliados e tentar viver o menos tempo possível em conflito. Mas, sempre estar preparado para a guerra. Sempre ter aliados que sejam inimigos de seus aliados, para o momento certo. Sempre viver sem viver. Sobreviver da forma que der. E assim sou. Fui. Serei?

Um conhecido, certa vez, em um de nossos churrascos solitários em casa, disse: “Nada melhor que cagar fumando e tomar banho bebendo”. E reconheci-me naquelas palavras. Sem pensar.

Hoje reconheço a solidão nelas inscritas, e o motivo de reconhecimento imediato. Eu sou um solitário. Um lobo fugido da matilha. Vagando sozinho em busca de espaço, de vida própria. Sem encontrar.

Cagar fumando é, quiçá, um dos ápices da reflexão solitária. Une duas das atividades mais íntimas do ser humano. Sim, porque fumar, embora, em parte, tenham transformado em uma ação social, é, em essência, um ato de rebeldia contra o social. É você e seu pedaço de papel com ervas e venenos flamejantes, fazendo cosplay de Maria Fumaça, entorpecendo o cérebro com a privação de oxigênio e se achando o último rei da Escócia. Uma cena digna de pena, mas que necessita de um certo distanciamento psicotempossocialdemagógico para reconhecer. E, ainda assim, eventualmente, admite-se a tese niezstchiana do Eterno Retorno, e volta-se a fumar. Dessa vez, sem justificativas plausíveis. É que é bom mesmo sendo uma merda.

Sobre o outro aspecto, beber tomando banho, não se fazem necessárias maiores explanações. Geralmente, locais para apoiar sabonetes ou xampús são pequenos dentro dos “boxes” de banhos. Assim, pensar a existência de espaço para duas latas ou long necks de cervejas num banho a dois é risível. E pressupor a possibilidade de divisão de uma lata ou long neck de cerveja num banho duplo é apostar na paz mundial, sem mais maiores considerações.

Talvez por isso, por pensar nisso e assim, é que me sinto triste e tão sem esperança. Nasci sozinho. Fiz-me só. Cultivei-me só. Reconheço-me assim e péssimo amigo. Não posso contar um ou dois. E assim me vejo até o fim.

Sou só. Fui só. E talvez serei. Talvez.

Só quero outra garrafa cheia.

Só mais uma garrafa.

E só.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

E se...

E se eu não tiver acordado?
E se eu morri durante a noite?
E se essa falta de sono
For proximidade do sono último
Definitivo?
Quem serei eu do outro lado?
Quem restará de mim por aqui?

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Jesus Camisa 10

Jesus foi um jogador de futebol nascido na cidade de Nazaré. Meio campista, perna esquerda, aos 12 anos começou jogando no sub-15 do modesto Apóstolos de Nazaré, um time da segunda divisão Nazarina. Sem demonstrar muita habilidade, o que era esperado dele por ser um canhoto, ganhou o apelido de “Perna de Pau”, muito em função da profissão de seu pai, que era marceneiro.

José adotara Jesus como seu filho, logo após descobrir que sua então namorada, Maria, a garota pura que se guardava para o casamento, inesperadamente aparecera grávida, dizendo ter sido utilizada como instrumento por Jeová, e que o seu filho seria, no futuro, uma estrela.

Jesus, que desde cedo se apegara ao pai adotivo, queria fazer de tudo para que o desejo de José fosse realizado. Assim, ciente de que não possuía os genes de um craque em si, apesar de a mãe viver repetindo que ele era filho de um deus, tomou para si a missão de treinar o quanto fosse necessário para se tornar um jogador profissional, realizando o sonho de seu pai.

Nos intervalos das aulas, na Escola Municipal Judaica de Nazaré, Jesus treinava faltas, controle de bola, embaixadinhas, tudo sob os olhares irônicos de seus colegas que, a cada erro do craque em treinamento, gritavam “Perna de Pau”. Jesus se tornou um obstinado. Treinou dia e noite, na chuva, no frio, no sol, na terra, na grama, anos depois, alguns diziam ter visto Jesus treinando até sobre a água. E então, depois de ser afastado do time sub-18 do Apóstolos de Nazaré, Jesus foi visto, nos campos de várzea da cidade-Estado, por um olheiro de um time de uma cidade vizinha, que o convidou a fazer um teste no clube.

Aos 18 anos, Jesus assinava com o Cristal de Belém, um time da primeira divisão daquela cidade, e recebia a camisa 10 do time.

No campeonato daquele ano, Jesus foi artilheiro e o craque escolhido pela revista “Profetas da Bola”. Logo despertou interesse nos dirigentes da seleção Belenzina, que propuseram a Jesus a obtenção da cidadania local para que disputasse a Copa Galileia por Belém.

Feliz com a sondagem, Jesus denegou em um primeiro momento, afinal, filho de Nazaré, queria disputar uma Copa por sua cidade natal, já que era também o sonho de José.

No entanto, a seleção de Nazaré contava com o melhor jogador do mundo à época, que jogava na posição de Jesus, uma posição de titularidade só viria com uma possível contusão do craque. Além disso, o técnico da seleção nazarina nutria certo desprezo por Jesus, principalmente pelo fato de ser filho adotivo, fruto de uma relação extraconjugal. Perguntado sobre a situação de Jesus, que não era convocado, mesmo em grande fase, o técnico Abrão Jr. comentou “Aqui nós respeitamos os valores morais e a família nazarina. Nunca aceitarei bastardos no meu time”.

Triste com a situação, Jesus levou o convite belenzino aos ouvidos dos seus pais, que se encheram de esperanças e indicaram ao filho que ele deveria aceitar. Maria repetiu o mantra de que o filho estava predestinado a grandes coisas e que o mundo ainda seria dele. Então, um ano antes da Copa da Galileia, aos 20 anos, Jesus recebia o seu título de cidadão de Belém e integrava, já dois depois, a seleção num amistoso contra a Judeia.

Naquele jogo de estreia, Jesus marcou dois gols, deu passe para outro e foi escolhido o jogador da partida. E assim começou uma carreira de sucesso, com vitórias e conquistas, até que, anos mais tarde, em sua terceira Copa da Galileia, com um título e um vice na bagagem, Jesus enfrentaria o dilema de sua vida. Nazaré vinha forte para a Copa daquele ano e, pela primeira vez desde que Jesus assumira a cidadania belenzina, a sua seleção não era a favorita. Muitos diziam ser certo uma final entre Belém e Nazaré. Os jornais da época só falavam disso. E não pararam de falar até o início da Copa do ano seguinte.

Aos 33 anos, Jesus já não era o mesmo garoto que ganhou fama por sua determinação e velocidade, mas, inteligente, ainda mantinha seu faro de gols e seu passe preciso aliado a um controle de jogo incomuns. Naquela Copa, o time comandado por Jesus vinha de resultados expressivos e tinha como titulares o goleiro Simão, os zagueiros André e Tiago, os laterais Filipe e Bartolomeu; no meio os volantes Mateus e Tomé, com Jesus e João na articulação e na frente, fechando o 4-4-2, Tadeu e Judas.

Antes de cada jogo, Jesus, em coletivas, dava os palpites de como seriam os jogos, no que acertava invariavelmente. Em razão desse fato, a imprensa o apelidou de “Jesus, o Profeta”. Como costumavam dizer que a seleção belenzina era composta por Jesus e mais Dez, o time passou a ser chamado de “Dezcípulos de Jesus”.

Nos preparativos para o primeiro jogo, Jesus sentiu um desconforto no joelho esquerdo e foi poupado de alguns treinos. No primeiro jogo, ficou no banco, entrando no segundo tempo para só garantir, com mais um gol, a vitória tranquila por 3-0 sobre a seleção da Caninéia. Na segunda rodada, entrou como titular, na vitória por 2-1 sobre Edom. Na terceira rodada, com a classificação antecipada, o time titular foi poupado, no empate em 2-2, diante de Siquém.

Nas oitavas, Belém enfrentou Babel, que, mesmo com um time desorganizado, que aparentava não se entender em campo, graças aos talentos individuais. Belém classificou-se com um 5-2, tranquilo, em brilhante atuação de Jesus. Tranquila também foi a classificação pra a semifinal, com um 4-0 sobre a seleção de Harã. Nas semifinais, Belém enfrentaria a forte seleção de Hebrom.

Do outro lado da chave, Nazaré vinha atropelando seus adversários com sonoras goleadas. A imprensa, e todo mundo que não eram os adversários de Belém e Nazaré nas semi, vibrava com a possibilidade da final das finais.

Jesus via a chance de enfrentar a seleção de sua cidade natal bem próxima. Aos 28 minutos do segundo tempo, o placar marcava 2-0 para Belém. Num contra-ataque rápido de Hebrom, Judas, voltando para ajudar na marcação, comete falta no meio campista adversário, o árbitro, distante, não vira o lance, marcou a falta e puxou o cartão amarelo. Judas, que já tinha cartão, ao notar que o árbitro estava confuso sobre o autor da penalidade, apontou Jesus como sendo o infrator. O árbitro apontou para Jesus, que conversava com o técnico, e mostrou o amarelo. Um silêncio tomava conta do estádio.

Com aquele amarelo, o terceiro na fase final, Jesus estava fora da tão esperada final, era um balde de água fria na cabeça dos fiéis ao bom futebol. Jesus estava desolado. O time todo partiu para cima do árbitro e, depois, para cima de Judas. Não havia o que fazer. Jesus ainda deu passe para mais dois gols, e o jogo terminou em 4-1. Do outro lado, Nazaré fazia 6-0. A grande final aconteceria, sem a presença do personagem principal.

Inconformada, a diretoria de Belém acionou seu corpo jurídico já ao final do jogo, e protocolaram uma petição junto ao organizador, pleiteando a análise do caso, com efeito suspensivo da punição a Jesus. Era um pedido desesperado, já que a entidade nunca havia aceitado pedido do tipo, fundamentando que a decisão do juiz do campo era soberana. Só um milagre salvava.

As semifinais estavam terminadas, a final definida. Na sexta-feira pela manhã, o dia seguinte às semi, o tribunal julgador da organização recebeu o pedido dos advogados de Belém. Marcaram julgamento excepcional para o sábado.

No sábado, porém, o julgamento foi prorrogado, já que haviam esquecidos que, judeus que eram, não poderiam julgar no sábado. O julgamento ficara para o domingo, horas antes da partida decisiva.

Nesse meio tempo, desde a saída da semifinal, Jesus não fora visto. Não passara pela zona mista do estádio, encontrava-se recluso. A imprensa não sabia dele. Os dirigentes, a comissão técnica, a assessoria de imprensa da seleção belenzina não se pronunciava sobre.

Domingo, 10 horas da manhã, 8 horas para o jogo, a comissão julgadora se reúne para julgar o pedido de suspensão da punição a Jesus. Na concentração, Jesus continuava sendo procurado pelos jornalistas, sem sucesso.

Meio dia: a sessão de julgamento é suspensa para o almoço. Após problemas com dois dos julgadores, o julgamento é retomado às 14 horas. 4 horas para o jogo.

Intensos debates, o julgador de Nazaré tenta pedir vista, o que impediria a decisão naquele dia. Outros rebatem o pedido. Intervalo proposto pelo presidente da comissão, após insultos trocados pelos membros.

16:30h: os ônibus de Belém e Nazaré saem de seus hotéis rumo ao estádio. Jesus não fora visto entrando no ônibus da seleção belenzina. Seu paradeiro ainda é incerto. Poucos minutos depois o julgamento é retomado.

17h: os jogadores sobem ao gramado para o reconhecimento prévio e aquecimento. Jesus não está entre eles. O presidente da comissão de julgamento de preparada para anunciar o resultado da votação acerca do recurso.

17:15h: os jogadores voltam ao vestiário. Da próxima vez que aparecerem no gramado será em definitivo para a final. Na comissão de julgamento, mais confusão e atraso.

18h: a final começa sem Jesus. O primeiro tempo é dominado por Nazaré que abre 2-0.

18:38h: após mais confusão, a decisão sai. Jesus é absolvido, Judas é suspenso por 8 jogos, por atitude antiética.

18:45h: fim do primeiro tempo. Belém vai ficando com o segundo vice na era Jesus.

19h: os times sobem ao gramado para o segundo tempo. Á beira do campo, um jogador se aquece. Barbudo, cabeludo, ao tirar o colete a torcida vibra. Jesus, desaparecido três dias antes, após a semifinal, volta e entrará em campo.

Com dois gols antes dos 15 minutos, um deles de Jesus, Belém dissipa a vantagem de Nazaré. O jogo segue parelho até os 43 minutos. Jesus pega a bola na intermediária, avança contra a marcação, deixa um para trás, tabela com João, que toca para Bartolomeu. Ele dribla o lateral adversário, faz o passe para trás. Jesus domina dentro da área, dá um chapéu no zagueiro e fuzila de perna esquerda para o gol do título. É a consagração do profeta.

Festa em Belém!

Na comemoração, Jesus anuncia sua aposentadoria. Explica que já está velho demais para isso tudo e que não aguentaria mais uma Copa. “Se for pra ficar pregadão no meio, eu prefiro não jogar”.

Anos depois, o técnico que barrou Jesus na seleção de Nazaré reconheceu o talento do craque, com ressalva: “… mas ainda é um filho bastardo”.


FIM.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Demistificando o Mundo 2: Bandido Bom é Bandido Morto?

Bandido bom é bandido morto?

O brasileiro mediano adora propagar soluções simples para problemas complexos, sempre sob a batuta de algum figurão especialista em porra nenhuma apresentador de programa ruim na TV. O Brasil, país que recebeu a visita ilustre do ET Bilu, parece não ter assimilado a sua mensagem para os terráqueos. Não buscamos conhecimento. Preferimos encher grupos em mensageiros instantâneos com baboseiras que não checamos serem verdadeiras ou não. Somos um país de canalhas. Talvez por isso sejamos governados por eles.

“Bandido tem que morrer”, “Eu que pago a comida deles”, “Eles têm muitos privilégios”, “Direitos humanos para humanos direitos”, etc. Os brados se repetem dia a dia, em todo lugar.

O sistema prisional brasileiro (e todos os outros) é um depósito de dejetos sociais. Ali estão encarcerados o que a sociedade reconhece como a escória. Mais de 622 mil indivíduos dividindo celas superlotadas, em condições sub-humanas, tomadas por facções criminosas que, surpresa surpresa, se alimentam da precariedade do sistema para crescer em número e poder.

Todos os entes federativos possuem número excessivo de presos, bem além da quantidade de vagas no sistema prisional. A superlotação é um dos principais problemas enfrentados, e o combate a esse problema, invariavelmente, é a construção de novos presídios, que logo lotam, e exigem a construção de novos presídios, que lotarão, criando um círculo vicioso sem fim. Enquanto isso, como já dito, as facções criminosas vão ganhando força. O PCC – Primeiro Comando da Capital, facção que começou nos presídios de São Paulo e hoje, por intermédio da política de distribuição da cúpula de facções por outros presídios no país, está presente em quase todos os Estados, é fruto desse disparate do Sistema.

Especialistas em criminologia afirmam que a ascensão do PCC dentro dos presídios paulistas ajudou, inclusive, na diminuição dos crimes de homicídios no Estado, algo que, por óbvio, o governo paulista rebate, afirmando ser fruto do aumento do policiamento. Na década de 1990, a taxa de homicídio no Estado era de 60 para cada 100.000 habitantes. A Organização Mundial da Saúde (OMS), diz que mais de 10 por cem mil é inadmissível. Hoje, a taxa média de homicídio no Estado é de 8,75/100.000. Drauzio Varela, oncologista, que dedicou boa parte da sua carreira no trabalho com presidiários, afirma, em entrevista a Revista Veja, que tal diminuição é resultado da política da facção.
Você diz ‘Puxa, diminuiu muito’, e as autoridades dizem que foi pelo aumento do policiamento, mas o número de assaltos e furtos aumentou, algo que o policiamento também conseguiria diminuir. E, em se tratando de homicídio, há casos que a polícia não consegue conter. Você tem crimes passionais, tem o cara que está bêbado e briga no bar. Quem consegue conter isso é o crime organizado porque ele proíbe. Você não pode matar ninguém no seu bairro sem autorização ou você morre. Você não pode matar a sua mulher se descobre uma traição, porque é proibido.i
Com uma política carcerária que viola os preceitos da Lei de Execução Penal, ignorando, em muitos casos, a sua existência, o crescimento e avanço das facções dentro dos presídios é, talvez, a única certeza que se pode ter do sistema prisional brasileiro. O poder público, acostumado a lutar contra o crime organizado nas favelas e bairros pobres, parece não ter aprendido a lição que é na sua ausência, na omissão estatal, que o crime toma conta. O crime organizado ocupa o espaço deixado pelo Estado, seja na favela, seja nos presídios.

Mas aí você, pequeno gafanhoto, deve estar se mordendo de ódio e batendo raivoso em seu teclado, dizendo a si mesmo que presos devem sofrer, que eles fizeram mal a pessoas de bem, etc. Eu sei, eu também acho que devem sofrer. Mas, sofrer dentro do que a lei impõe. O cidadão deve lutar para que a Lei seja resguardada e não violada, e que ela seja razoável, senão o defensor do “bandido bom é bandido morto” de hoje pode ser o bandido de amanhã.

É comum nos colocarmos fora do sistema, quando o sistema considerado é o prisional. Mas, ser “bandido” é muito mais fácil do que imaginamos. Quando se pensa em bandido, na maioria das vezes, vem à mente a imagem do traficante, mocosado na boca, sempre à espreita e pronto para correr quando a polícia aparecer. Ou o assassino frio, que mata sem dó. O assaltante que mata para roubar. E, de fato, esses são os crimes que gritam nas “ibagens” dos programas policiais.

No entanto, os presos por tráficos (que representam, na população carcerária masculina, cerca de 25% do total) são, em sua maioria, pequenos traficantes, ou, até mesmo, usuários que foram flagrados com quantidades pouco acima do “tolerável” (e essa quantidade pode ser qualquer uma, posto não existir uma definição concreta do que se considera ser quantidade para uso ou tráfico). Donos de helicópteros com meia tonelada de pasta base de cocaína não são presos no país. Esses possuem costas largas.

Em segundo lugar na lista dos crimes que mais encarceram está o roubo, bem próximo ao tráfico, com 21% do total. Latrocínio, o roubo seguido de morte, responde por menos de 4% da população carcerária. Já os presos por homicídio representam, aproximadamente, 13% da populaçãoii. Grande parte desses homicídios cometidos em situações nas quais a razoabilidade da condição humana se perde. Quantos casos de briga de bar ou discussão no trânsito você conhece que acabaram, por uma imbecilidade sem tamanho, em morte de um ou mais participantes? A teórica pacificidade do povo brasileiro é posta à prova todo santo dia.

Considerando que o tráfico de drogas não é, em si, um crime violento, embora seja equiparado a crime hediondo, temos que 38% dos presidiários brasileiros estão encarcerados por crimes de natureza violenta. Assim, 62%, ou aproximadamente, 386 mil detentos, cumprem pena por crimes praticados sem o uso de violência. São presos por crimes como violação da lei do desarmamento, furto, receptação (comprar aquele som automotivo em loja de reputação duvidosa, com preço camarada), dentre outros, que na penitenciária, superlotada, sem condições mínimas de higiene, onde dormirão no chão, conviverão, dia após dia sem ocupaçãoiii com sequestradores, homicidas, toda a gama e diversidade de criminosos possível e imaginável. Acabam aprendendo novas técnicas, mesmo por osmose, e saem, porque eventualmente todo mundo sai, pior do que entrou, comprovando que o sistema prisional não atende à sua função precípua que é a de reabilitar os detentos.

Mas, você ainda acha que bandido tem que morrer, principalmente quem mata cidadão de bem. Então vamos analisar a seguinte situação:

Você está com seu carro numa noite qualquer, num fim de semana qualquer. Pega a (o) sua (seu) namorada (o), ou então amigos e vão para uma balada. Bebem, cantam, dançam, divertem-se a valer. Pegam o carro e na volta atropelam e matam uma pessoa que estava atravessando a rua e que você, por uma distração qualquer, não pôde perceber a aproximação. Qual a pena que você merece? Aposto que não escolherá a pena de morte, certo? E sendo preso, qual tipo de penitenciária você gostaria de ficar? No Brasil só temos a do tipo brasileira. E cela especial para quem tem ensino superior é só até o julgamento final. Depois é prisão comum, como todos os bandidos que você esbraveja querer morto.

Defender a pena de morte é muito arriscado. Vários são os casos no mundo de inocência por produção de nova prova, fruto do avanço tecnológico. E em um país cujo Poder Judiciário se mostra claudicante no uso do termo Justiça em seus julgados (mesmo usando sempre), a pena capital viraria uma arma na mão do Estado que é melhor não dar a ele.

Defender a precarização das instalações criminais no país é correr o risco de, em um erro na vida, sermos vítimas desse sistema. Ninguém está livre de um acesso de fúria. Ninguém é avesso ao erro. E um ou outro pode ocasionar a inserção dentro do conceito de “bandido” com as suas consequências todas.

Portanto, bandido bom é aquele que pretende se ressocializar e o sistema precisa dar as condições para isso. Pelo bem das pessoas de bem.


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ihttp://veja.abril.com.br/entretenimento/drauzio-varella-pcc-ajudou-a-diminuir-violencia
iiPesquisa acerca do perfil da população carcerária brasileira: https://www.nexojornal.com.br/grafico/2017/01/18/Qual-o-perfil-da-popula%C3%A7%C3%A3o-carcer%C3%A1ria-brasileira
iiiEmbora seja obrigação do Estado oferecer trabalho ao preso, e dever do preso trabalhar, não existe oferta suficiente.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

PhD #2 - Curso de Direito

E cá estamos, mais uma vez, com o meu, o seu, o nosso “mal conhecido mas já considerado pacas”: Pitaco de hermenêutica Duvidosa. Nome este escolhido por 2 das 4 pessoas que votaram na maior e mais espetacularmente fracassada pesquisa de opinião já realizada neste país, e porque não dizer no mundo.

Neste número dois o assunto é, muito provavelmente, um dos raros que posso tratar com alguma propriedade, afinal, são treze anos de luta, trocas de instituições, perseguições (porque hoje em dia todo mundo é perseguido), provas, turmas e mais turmas, salas e mais salas, sobe e desce de escadas, trabalhos, mais provas, uma correria no fim: o curso de Direito.

Vale a pena? Como é a formação? Existe diferença entre o curso em faculdade pública e particular? Como são os colegas de classe? O que fazer depois? E os professores? Vou tentar explicar tudo como eu bem sei, deixando tudo mais complicado.

Roda a vinheta!

Curso de Direito! Esse sonho dos mais antigos, “Meu filho vai sê dotô”, “Vai sê um homi da lei”, e eram sempre, sempre, só os homens. Ser advogado, em tempos idos, era garantia de status, sinal de ascensão social para os que vinham de baixo. O sonho virou pesadelo. Hoje o Brasil detém o posto de maior número de faculdades de Direito no mundo. Temos, aproximadamente, 1240 cursos no país, contra 1100 em todo o resto do mundo[i]. Estima-se em 4 milhões os bacharéis no Brasil e já ultrapassamos a marca de um milhão de advogados, conforme pesquisa realizada em 2016.[ii] São 206 brasileiros para cada advogado.

Olhando esses números é de se pensar que talvez não seja uma boa ideia ingressar nessa área. E de fato, não é.

As faculdades de direito, na sua esmagadora maioria, são indústrias de formar bacharéis... e só! Não existem programas de incentivo à pesquisa, o corpo docente é composto por pessoas sem experiência, sem titulação, os alunos querem o diploma pelo diploma, calcado na lógica do “eu tô pagando, eu quero ter” e, muitas vezes, levam essa lógica absurda para o trato com os professores na base do “você é meu funcionário”.

Tendo convivido com diferentes turmas nesses 13 anos pelos quais passei 3 instituições (uma pública e duas particulares), posso dizer que vi de tudo. Dentre os discentes que dividiram comigo as cadeiras das salas padronizadas (são todas iguais), pude compartilhar experiências com pessoas de alto gabarito intelectual até aqueles que, já em vias de concluir o curso, mostravam-se ainda claudicantes mesmo em questões de alfabetização.

Na pública, por força da seleção mais acurada talvez, o nível de alunos se mostrava mais elevado. Ali, inclusive, a cobrança dos professores sempre foi maior. Os mimos eram raros e alguns professores beiravam à histeria tamanha dedicação e amor pelo curso. Um deles chegava mesmo a se mostrar extremamente preconceituoso contra alunos dos cursos de humanas, como história, geografia, etc. Não à toa, hoje aquela instituição figura entre as 5 que mais aprovam no Exame de Ordem[iii].

Nas particulares, quiçá pelo viés industrial que tomou o curso, principalmente após a proliferação endêmica de faculdades no país, vivenciei as mais perniciosas relações entre professores e alunos. Pressionados por resultados, os professores acabam sendo condescendentes com os alunos, forçados pelas regras mais volúveis das instituições. Vale citar aqui o fato de os professores serem obrigados a dar trabalhos extra-aulas, e estes chegarem a valer 30% da nota. Considerando a média de aprovação, tal nota equivale a 50% da média bimestral. Além disso, presenciei flagrantes desvios de condutas de professores (um deles coordenador de curso) que não só aceitavam, como recomendavam, para fins de abono de falta, a entrega de atestados médicos sem base real. Fui vítima desse ato e, por não concordar com o mesmo, acabei sendo reprovado mesmo tendo 12 faltas a menos que o limite máximo estabelecido. E média 8.

Tirantes raras e dispendiosas exceções, faculdades particulares, como dito, são indústrias de diploma. Não te darão formação necessária para o mercado de trabalho. Não vão ter oferecer o mínimo para avançares nas áreas de pesquisa. Mas, garantem o grau superior, possibilitando a chance de concursos com salários mais elevados.

Vladimir Passos de Freitas, em artigo sobre o excesso de cursos de direito no país, busca explicar o motivo de tamanha proliferação:
Mas por que tantos cursos de Direito? Parte da resposta está no aspecto econômico. O curso de Direito não exige muitos gastos, não tem laboratórios, equipamentos sofisticados. Precisa apenas de algumas salas de aula, um corpo de professores cuja remuneração, exceto nas universidades de bom porte, é baixa, e uma biblioteca. Essa não representa maiores despesas, porque pode ser comprada de herdeiros de antigos profissionais do Direito, que não têm espaço e não sabem o que fazer com milhares de livros deixados por seus ascendentes. Portanto, Faculdades de Direito propiciam bons lucros.[iv]
Agora, considerando o pós-curso. Formado, diploma em mãos. As possibilidades se abrem.
Se a vontade for partir para a advocacia privada, sendo dono do seu próprio comércio (perdoem-me os colegas e amigos que, como meu pai – e eu em breve – ,  militam nessa área, mas, é um grande comércio, de fato), então não importa o tipo, pública ou privada, da faculdade. O que vai importar é o modo como o aluno levou a faculdade. Pode ser meio piegas e fora de realidade, mas, conforme diziam e ainda ressoam pelos corredores das instituições, eu acredito que o aluno faz o seu curso. Isso vale também para os concurseiros.

Se o desejo for ingressar numa carreira de advocacia corporativa, num grande conglomerado de escritórios, então temos dois caminhos: a indicação e a formação. A indicação é o famoso “QI”, ou o que hoje se convencionou chamar de “networking”. Alguém de influência indica quem ele gosta e quer trabalhando no escritório. Já no caso da formação, o buraco é mais embaixo e aí pesa, e muito, o tipo de faculdade.

Nesse caso, a faculdade pública, ou aquelas particulares de renome, tem poder. Por que é só o nome? Não! Porque tem história por trás. Tem excelência, tem pesquisa, tem nomes. Pense assim, se fossem lhes dadas duas opções, sem quaisquer contrapartidas, qual das faculdades você escolheria: UNIP ou USP?

Parece óbvio, não?

Se você na hora de escolher o curso optou pela pública com mais bagagem e história, o que acha que acontece na hora de uma pré-seleção, quando o responsável pela escolha só tem a letra fria de currículos em mãos? Pois é.

A advocacia privada ainda sofre com a concorrência das defensorias públicas, das assessorias feitas por estagiários em faculdades de Direito, do Google, que talvez seja o maior escritório de advocacia do mundo hoje (e consultório médico). Com 206 clientes em potencial apenas, as coisas parecem não ter futuro.

Quando estagiava em outra cidade, em determinado momento do dia, os advogados desciam para o café e o bate-papo da manhã e depois da tarde. Eu, que era estagiário metido à besta, descia junto. Já há dez anos dizia-se das dificuldades da advocacia privada, mesmo se tratando de um escritório relativamente bem sucedido naquela cidade. Uma das conclusões que foi pincelada daquelas reuniões, após um dos mestres discorrer sobre a situação dos seus ex-colegas de bancos universitários é de que, mal ou bem, quem advoga, pelo menos, não passa fome. Consegue viver.

O Curso de Direito, em tempos idos, era o grande xodó, ao lado do de Medicina, das famílias abastadas brasileiras (e também das mais humildes). Todo mundo queria um “dotô” na família. Hoje é bem possível que todo mundo tenha. Se não na família nuclear, na estendida.

Mudei esse texto umas duas ou três vezes já e essa parece ser a definitiva. Tentarei concluir.

Se você busca por um curso que te dê uma visão mais ampliada da vida, do cotidiano, da realidade, o Direito é um bom caminho. Se procura ganhar dinheiro, busque outra área.

Se mesmo diante de todo o panorama aqui traçado você achar que direito é a sua praia, então estude antes e tente uma faculdade de renome, que possa te dar alguma vantagem ao final do curso. Como a grande maioria dos cursos universitários, o Direito forma desempregados, bacharéis que não tem por onde começar. Aliás, pior que a maioria dos cursos universitários, o Direito não te dá quase nenhuma opção com a simples formatura. Após o diploma em mãos é preciso batalhar por outra conquista, o Exame de Ordem, cuja taxa de aprovação gira em torno dos 15%[v], tendo alcançado 22%[vi] na sua última prova. Por isso também é importante um curso de peso, que dê bagagem suficiente para enfrentar esses desafios e não apenas um singelo pedaço de papel.

Para aprofundar a discussão, recomendo o episódio “Valer a Pena Fazer Direito?”, do podcast “Tá fazendo direito?”: http://pca.st/3WZq

E por hoje é só o que tinha por hoje.
Amanhã um pouco mais do de amanhã.
Beijo, abraço, aperto de mão ou aceno ao longe.

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[i] http://www.oab.org.br/noticia/20734/brasil-sozinho-tem-mais-faculdades-de-direito-que-todos-os-paises
[ii] http://www.conjur.com.br/2016-nov-18/total-advogados-brasil-chega-milhao-segundo-oab
[iii] http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI251048,91041-Faculdades+com+maior+aprovacao+no+XX+Exame+de+Ordem
[iv] http://www.conjur.com.br/2015-set-06/segunda-leitura-excesso-faculdades-direito-implodem-mercado-trabalho
[v] http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI251031,51045-Aprovacao+no+XX+Exame+de+Ordem+e+de+15
[vi] http://www.conjur.com.br/2016-dez-25/indice-aprovacao-xx-fase-exame-ordem-fica-22

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Nós vamos morrer - Devaneios sem sentido procurando um sentido pra vida

A gente vai morrer.

Não, é sério, nós vamos! Todo mundo morre, eventualmente.

Não vamos morrer hoje. Acho. Hoje parece que não. A não ser que esse quarto exploda. A não ser que um avião caia e nos esmague aqui no chão. Mas é certo que vamos morrer um dia. E tem gente que fica alardeada com isso. Um monte de gente se desespera. Querem encontrar o sentido da vida. É mole? A gente ainda nem sequer tem certeza de como chegamos a esse tipo de vida que temos. Não sabemos de onde veio a vida. E essa gente preocupada com o sentido!? Ora, sentido! A vida não tem sentido. Você faz o que quiser e arca com o que vier disso aí. A vida não tem sentido, é um toma lá dá cá. Mas, todo mundo só quer o “dá cá”. Ninguém quer arcar com as consequências. Ninguém quer assumir a sua própria responsabilidade diante da própria vida. Querem sentido! Argh!

Sentido é seguir, ou morrer. Não vê sentido? Vá buscar do outro lado. Do lado de onde ninguém voltou. A morte é o sentido. E evitar esse sentido é o objetivo. Mas, não dá para evitar. A gente vai morrer. Uns mais cedo. Outros até aceleram o processo. Quem pode julgar? Uns dirão que é covardia. Outros dirão que é demonstração de coragem. Há quem diga que é preciso muito desprendimento. E outros alegam excesso de amor próprio. Eu não acho nada. Apenas peço que não me encham o saco. Que não façam de suas mortes um espetáculo. Todo mundo vai morrer, então morram discretamente. A vida é nossa para fazermos o que quisermos. E tudo é uma merda só. Mas é a merda que temos. A única merda que temos, até onde podemos provar. Vida após a morte, reencarnação, enquanto não puderem demonstrar, essa é a única vida que temos e é nela que temos que fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para sobreviver a ela. Se bem que nem tudo.

Se a vida já é uma merda, e todos, acho, concordamos com isso, fazer com que a vida fique ainda mais merda é algo que não podemos aceitar. Se você não está suportando, se é tudo muito demais para ti, ok, vá lá, faça o que achar que precisa ser feito. Eu vou entender. Mas, não prejudique a vida dos outros. O que é muito difícil, não importa o caminho que você tomar. A gente vai morrer, é fato, e tem sempre alguém que sofrerá com isso, outro fato. Mas, com a morte acaba toda essa merda, para nós. Acaba a dor. Acabam os problemas. As dívidas. Sem volta. Sem segunda chance. Pá-pum. Acabou.

É tudo uma merda, meus caros. Tu-do u-ma mer-da!

Por isso precisamos ser moscas, chafurdar na merda, se enrolar nela, e encontrar uma razão. Sempre tem. É só procurar com cuidado e sem pressa.

A gente vai morrer, isso é uma certeza. E se é uma certeza, a graça maior deve ser evitar essa certeza ao máximo. Afinal, qual a graça de se confirmar aquilo que já esperam de nós?

Vamos curtir essa merda, moscarada!

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Abaixo o desarmamento!

José da Silva é um brasileiro como tantos outros, honesto, trabalhador, defensor da família, dos bons costumes, devoto de Nossa Senhora Aparecida, chegou à classe C depois de políticas de incentivo ao consumo, orquestrada por um governo que diziam ser de esquerda, defensor dos trabalhadores, mas que enriqueceu banqueiros, latifundiários e empreiteiros, e decaiu para a classe D após a maré alta baixar e o preço pelas equivocadas políticas de isenção fiscal de determinados setores amigos não poderem mais ser mantidas.

José da Silva está puto com o mundo, com a bandidagem, com a roubalheira. Protesta nas redes sociais, brigou com amigos, não vê mais o primo, está emburrado com o irmão. Participou de várias passeatas com sua camisa da seleção canarinho, que comprou no camelô. Gritou, bradou, urrou. Foi à luta.

Na pauta diversificada, lutou contra tudo, defendeu a revogação da lei do desarmamento com unhas e dentes. Defensor da família e dos bons costumes queria ter o direito de empunhar uma arma contra bandidos que quisessem o mal dos seus. Lutou, bradou, urrou. Foi à luta.

E ficou feliz quando, finalmente, a famigerada lei caiu, liberando os cidadãos de bem a possuir uma arma de fogo para sua defesa e de sua família. Estava em êxtase, simplesmente em êxtase.

Assim que as regras passaram a valer, dirigiu-se senhor de si, altivo, radiane, peito estufado para uma loja, a fim de adquirir a sua proteção familiar. Desceu do segundo ônibus quatro quadras da loja que escolhera. Foi revistado na entrada, questionado. Ao adentrar, perquiriu o vendedor sobre a aquisição desejada. Foi murchando: curso de mil reais, a arma, a mais simples, dois mil e oitocentos dinheiros. José da Silva ganhava salário mínimo.

Mas, ele era um cidadão de bem, haviam dito que ele era merecedor de defender os seus, que ele não poderia contar com ninguém. Sem pestanejar, José da Silva, o cidadão, o pai de família, comprou o curso, a arma, parcelando em 4 vezes. Quatro meses de salário.

Morreu de fome. A mulher e os filhos os tinham deixado. Mas morreu sem ser roubado. Possuidor do instrumento que lhe dava segurança.


31 de maio de 2017

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Bigode

Era mais um dia de palestras, conversas intermináveis com catedráticos, pessoas que ele simplesmente não suportava dividir o espaço. Não o entendiam, diziam ser não literal, literário demais, já ouvira pelos corredores, entre cochichos e sussurros que os tachava louco. Louco? Louco eram os que não conseguiam enxergar a verdadeira loucura na sociedade.

Não entendem a ironia da vida. Não entenderão nunca a ironia do texto. Vivia repetindo para si mesmo, a cada nova crítica ao seu estilo peculiar. Achava-se velho demais para aquilo, era novo demais para aquilo. Não entendiam. E aquilo o cansava. O abatia. Apesar de nunca esmorecer.

As palestras eram péssimas. E piores eram os coquetéis. Conversas. Risadas. Bebidas sem limites e ninguém ali entendia o que queria dizer. O homem deveria ser superado. Cansado. Aquilo o matava aos poucos. Malditos!

Eles não entendem. Confundem. Mudam o sentido. Roubam dele o que não há e querem me culpar por teoricamente ter fundado o mundo em que se afundam. Malditos! O homem precisa ser superado. Malditos!
Olhando o jardim, pela janela do grande salão, sozinho com seus pensamentos, sentiu uma comichão a crescer-lhe entre as pernas. Malditos! Roçou as pernas umas nas outras. Nada. O incômodo tomando proporções desesperadoras. Tentou as mãos. Por cima da calça o alívio mal foi sentido. E passou a se tornar intensamente incômodo. Não resistindo, encostou-se atrás de uma pilastra, entre plantas e meteu a mão dentro da roupa.

Coçou o saco até aliviar-se inteiramente. Disfarçadamente, observando os que estavam ao redor, levou os dedos até o nariz e cheirou.

Niezstche ficou o resto da noite com o bigode cheirando a saco.

26 de maio de 2017