Jesus foi um jogador de futebol nascido na cidade
de Nazaré. Meio campista, perna esquerda, aos 12 anos começou
jogando no sub-15 do modesto Apóstolos de Nazaré, um time da
segunda divisão Nazarina. Sem demonstrar muita habilidade, o que era
esperado dele por ser um canhoto, ganhou o apelido de “Perna de
Pau”, muito em função da profissão de seu pai, que era
marceneiro.
José adotara Jesus como seu filho, logo após
descobrir que sua então namorada, Maria, a garota pura que se
guardava para o casamento, inesperadamente aparecera grávida,
dizendo ter sido utilizada como instrumento por Jeová, e que o seu
filho seria, no futuro, uma estrela.
Jesus, que desde cedo se apegara ao pai adotivo,
queria fazer de tudo para que o desejo de José fosse realizado.
Assim, ciente de que não possuía os genes de um craque em si,
apesar de a mãe viver repetindo que ele era filho de um deus, tomou
para si a missão de treinar o quanto fosse necessário para se
tornar um jogador profissional, realizando o sonho de seu pai.
Nos intervalos das aulas, na Escola Municipal
Judaica de Nazaré, Jesus treinava faltas, controle de bola,
embaixadinhas, tudo sob os olhares irônicos de seus colegas que, a
cada erro do craque em treinamento, gritavam “Perna de Pau”.
Jesus se tornou um obstinado. Treinou dia e noite, na chuva, no frio,
no sol, na terra, na grama, anos depois, alguns diziam ter visto
Jesus treinando até sobre a água. E então, depois de ser afastado
do time sub-18 do Apóstolos de Nazaré, Jesus foi visto, nos campos
de várzea da cidade-Estado, por um olheiro de um time de uma cidade
vizinha, que o convidou a fazer um teste no clube.
Aos 18 anos, Jesus assinava com o Cristal de
Belém, um time da primeira divisão daquela cidade, e recebia a
camisa 10 do time.
No campeonato daquele ano, Jesus foi artilheiro e
o craque escolhido pela revista “Profetas da Bola”. Logo
despertou interesse nos dirigentes da seleção Belenzina, que
propuseram a Jesus a obtenção da cidadania local para que
disputasse a Copa Galileia por Belém.
Feliz com a sondagem, Jesus denegou em um primeiro
momento, afinal, filho de Nazaré, queria disputar uma Copa por sua
cidade natal, já que era também o sonho de José.
No entanto, a seleção de Nazaré contava com o
melhor jogador do mundo à época, que jogava na posição de Jesus,
uma posição de titularidade só viria com uma possível contusão
do craque. Além disso, o técnico da seleção nazarina nutria certo
desprezo por Jesus, principalmente pelo fato de ser filho adotivo,
fruto de uma relação extraconjugal. Perguntado sobre a situação
de Jesus, que não era convocado, mesmo em grande fase, o técnico
Abrão Jr. comentou “Aqui nós respeitamos os valores morais e a
família nazarina. Nunca aceitarei bastardos no meu time”.
Triste com a situação, Jesus levou o convite
belenzino aos ouvidos dos seus pais, que se encheram de esperanças e
indicaram ao filho que ele deveria aceitar. Maria repetiu o mantra de
que o filho estava predestinado a grandes coisas e que o mundo ainda
seria dele. Então, um ano antes da Copa da Galileia, aos 20 anos,
Jesus recebia o seu título de cidadão de Belém e integrava, já
dois depois, a seleção num amistoso contra a Judeia.
Naquele jogo de estreia, Jesus marcou dois gols,
deu passe para outro e foi escolhido o jogador da partida. E assim
começou uma carreira de sucesso, com vitórias e conquistas, até
que, anos mais tarde, em sua terceira Copa da Galileia, com um título
e um vice na bagagem, Jesus enfrentaria o dilema de sua vida. Nazaré
vinha forte para a Copa daquele ano e, pela primeira vez desde que
Jesus assumira a cidadania belenzina, a sua seleção não era a
favorita. Muitos diziam ser certo uma final entre Belém e Nazaré.
Os jornais da época só falavam disso. E não pararam de falar até
o início da Copa do ano seguinte.
Aos 33 anos, Jesus já não era o mesmo garoto que
ganhou fama por sua determinação e velocidade, mas, inteligente,
ainda mantinha seu faro de gols e seu passe preciso aliado a um
controle de jogo incomuns. Naquela Copa, o time comandado por Jesus
vinha de resultados expressivos e tinha como titulares o goleiro
Simão, os zagueiros André e Tiago, os laterais Filipe e Bartolomeu;
no meio os volantes Mateus e Tomé, com Jesus e João na articulação
e na frente, fechando o 4-4-2, Tadeu e Judas.
Antes de cada jogo, Jesus, em coletivas, dava os
palpites de como seriam os jogos, no que acertava invariavelmente. Em
razão desse fato, a imprensa o apelidou de “Jesus, o Profeta”.
Como costumavam dizer que a seleção belenzina era composta por
Jesus e mais Dez, o time passou a ser chamado de “Dezcípulos de
Jesus”.
Nos preparativos para o primeiro jogo, Jesus
sentiu um desconforto no joelho esquerdo e foi poupado de alguns
treinos. No primeiro jogo, ficou no banco, entrando no segundo tempo
para só garantir, com mais um gol, a vitória tranquila por 3-0
sobre a seleção da Caninéia. Na segunda rodada, entrou como
titular, na vitória por 2-1 sobre Edom. Na terceira rodada, com a
classificação antecipada, o time titular foi poupado, no empate em
2-2, diante de Siquém.
Nas oitavas, Belém enfrentou Babel, que, mesmo
com um time desorganizado, que aparentava não se entender em campo,
graças aos talentos individuais. Belém classificou-se com um 5-2,
tranquilo, em brilhante atuação de Jesus. Tranquila também foi a
classificação pra a semifinal, com um 4-0 sobre a seleção de
Harã. Nas semifinais, Belém enfrentaria a forte seleção de
Hebrom.
Do outro lado da chave, Nazaré vinha atropelando
seus adversários com sonoras goleadas. A imprensa, e todo mundo que
não eram os adversários de Belém e Nazaré nas semi, vibrava com a
possibilidade da final das finais.
Jesus via a chance de enfrentar a seleção de sua
cidade natal bem próxima. Aos 28 minutos do segundo tempo, o placar
marcava 2-0 para Belém. Num contra-ataque rápido de Hebrom, Judas,
voltando para ajudar na marcação, comete falta no meio campista
adversário, o árbitro, distante, não vira o lance, marcou a falta
e puxou o cartão amarelo. Judas, que já tinha cartão, ao notar que
o árbitro estava confuso sobre o autor da penalidade, apontou Jesus
como sendo o infrator. O árbitro apontou para Jesus, que conversava
com o técnico, e mostrou o amarelo. Um silêncio tomava conta do
estádio.
Com aquele amarelo, o terceiro na fase final,
Jesus estava fora da tão esperada final, era um balde de água fria
na cabeça dos fiéis ao bom futebol. Jesus estava desolado. O time
todo partiu para cima do árbitro e, depois, para cima de Judas. Não
havia o que fazer. Jesus ainda deu passe para mais dois gols, e o
jogo terminou em 4-1. Do outro lado, Nazaré fazia 6-0. A grande
final aconteceria, sem a presença do personagem principal.
Inconformada, a diretoria de Belém acionou seu
corpo jurídico já ao final do jogo, e protocolaram uma petição
junto ao organizador, pleiteando a análise do caso, com efeito
suspensivo da punição a Jesus. Era um pedido desesperado, já que a
entidade nunca havia aceitado pedido do tipo, fundamentando que a
decisão do juiz do campo era soberana. Só um milagre salvava.
As semifinais estavam terminadas, a final
definida. Na sexta-feira pela manhã, o dia seguinte às semi, o
tribunal julgador da organização recebeu o pedido dos advogados de
Belém. Marcaram julgamento excepcional para o sábado.
No sábado, porém, o julgamento foi prorrogado,
já que haviam esquecidos que, judeus que eram, não poderiam julgar
no sábado. O julgamento ficara para o domingo, horas antes da
partida decisiva.
Nesse meio tempo, desde a saída da semifinal,
Jesus não fora visto. Não passara pela zona mista do estádio,
encontrava-se recluso. A imprensa não sabia dele. Os dirigentes, a
comissão técnica, a assessoria de imprensa da seleção belenzina
não se pronunciava sobre.
Domingo, 10 horas da manhã, 8 horas para o jogo,
a comissão julgadora se reúne para julgar o pedido de suspensão da
punição a Jesus. Na concentração, Jesus continuava sendo
procurado pelos jornalistas, sem sucesso.
Meio dia: a sessão de julgamento é suspensa para
o almoço. Após problemas com dois dos julgadores, o julgamento é
retomado às 14 horas. 4 horas para o jogo.
Intensos debates, o julgador de Nazaré tenta
pedir vista, o que impediria a decisão naquele dia. Outros rebatem o
pedido. Intervalo proposto pelo presidente da comissão, após
insultos trocados pelos membros.
16:30h: os ônibus de Belém e Nazaré saem de
seus hotéis rumo ao estádio. Jesus não fora visto entrando no
ônibus da seleção belenzina. Seu paradeiro ainda é incerto.
Poucos minutos depois o julgamento é retomado.
17h: os jogadores sobem ao gramado para o
reconhecimento prévio e aquecimento. Jesus não está entre eles. O
presidente da comissão de julgamento de preparada para anunciar o
resultado da votação acerca do recurso.
17:15h: os jogadores voltam ao vestiário. Da
próxima vez que aparecerem no gramado será em definitivo para a
final. Na comissão de julgamento, mais confusão e atraso.
18h: a final começa sem Jesus. O primeiro tempo é
dominado por Nazaré que abre 2-0.
18:38h: após mais confusão, a decisão sai.
Jesus é absolvido, Judas é suspenso por 8 jogos, por atitude
antiética.
18:45h: fim do primeiro tempo. Belém vai ficando
com o segundo vice na era Jesus.
19h: os times sobem ao gramado para o segundo
tempo. Á beira do campo, um jogador se aquece. Barbudo, cabeludo, ao
tirar o colete a torcida vibra. Jesus, desaparecido três dias antes,
após a semifinal, volta e entrará em campo.
Com dois gols antes dos 15 minutos, um deles de
Jesus, Belém dissipa a vantagem de Nazaré. O jogo segue parelho até
os 43 minutos. Jesus pega a bola na intermediária, avança contra a
marcação, deixa um para trás, tabela com João, que toca para
Bartolomeu. Ele dribla o lateral adversário, faz o passe para trás.
Jesus domina dentro da área, dá um chapéu no zagueiro e fuzila de
perna esquerda para o gol do título. É a consagração do profeta.
Festa em Belém!
Na comemoração, Jesus anuncia
sua aposentadoria. Explica que já está velho demais para isso tudo
e que não aguentaria mais uma Copa. “Se for pra ficar pregadão no
meio, eu prefiro não jogar”.
Anos depois, o técnico que barrou Jesus na
seleção de Nazaré reconheceu o talento do craque, com ressalva: “…
mas ainda é um filho bastardo”.
FIM.