quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Este avião

Segura a minha mão.
Não, eu sei, eu não tenho medo.
Não, eu sei, eu sou como você sabe,
eu sei de mim e do que mais.
Eu sei, isso e mais e tudo o mais, eu sei.
Sabe que eu sei do que você me diz,
que foi o que eu te disse
e o que te digo
e vou dizer,
eu sei.
Sim, segure aqui a minha mão,
eu sei ele treme e tudo para,
parece que agora vai e nunca mais,
segura aqui a minha mão
e vamos ao ar e mais além
decolar e só deixar ao vai e vem
o que nos volta ao chão
que viajamos aos ceus
e aqui estamos
de volta mão em mão
no chão
do itininerário
aqui
deste avião.

18 de dezembro de 2018

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Roteiro de atendimento

[Improvisos são permitidos em qualquer fase do atendimento, sempre pautado na empatia com o cliente]

[Chamar o próximo da fila]

Quando o cliente chega na estação de atendimento, sorrindo:

- Boa tarde (ou boa noite), tudo bem? (…) Qual o CPF, por favor?

[Quando o sistema demonstra que o cliente já tem cadastro]

Repetir o nome completo do cliente, confirmar endereço, telefones, e-mail. Atualizado o cadastro, gravar as informações.

[Quando o sistema mostra que o cliente não tem cadastro]

Informar a inexistência de cadastro, confirmando o número do CPF e solicitar documento com foto. Após encerramento do cadastro, com endereço e telefones de contato:

Sorrindo e olhando para o cliente:

- O pagamento foi efetuado através do cartão X, do Banco Tal?

Se sim:

- O(A) senhor(a) poderia me apresentar o cartão e os comprovantes da compra com o cartão? Pode ser pelo aplicativo, ou mensagens de texto das transações também.

Explicar o critério da promoção.

Se não:

- Neste ano, na promoção, 400 reais em compras com o cartão X dá direito a 2 cupons adicionais. Se for o cartão X, na bandeira Y, 4 adicionais.

Ouvir o lamento eventual com atenção e tentar confortar o cliente, passando imediatamente ao cadastro dos cupons fiscais. Após finda essa etapa:

- Senhor(a) Fulano(a), ficou então um total de X reais, emitindo “x” cupons, ficando um saldo remanescente de X reais.

Especificar saldos diferentes em relação aos cartões, quando for o caso.

Em caso de uso do cartão X, do banco tal:

- Por ter utilizado o cartão X, o(a) senhor(a) ainda ganha um cupom de desconto no estacionamento, válido para as 3 primeiras horas, que é o primeiro período.

Explicações quanto ao uso podem ser necessárias nessa fase.

Entregar os cupons fiscais, logo depois os cupons para o sorteio e indicar a localização da urna. Lembrando que não é necessário preencher nada.

Finalizando o atendimento:

- Boa tarde (ou boa noite) e boa sorte.

[Caso o cliente seja sorteado com o prêmio instantâneo]

- Senhor(a) Fulano(a), ficou então um total de X reais, emitindo “x” cupons, ficando um saldo remanescente de X reais. E o(a) senhor(a) acaba de ser sorteado(a) e ganhou um par de ingressos pro show do Cicrano. Só um momento que vou pegar os ingressos.

Entregar a folha de recibo, explicar o procedimento de preenchimento. Entregar o envelope com os ingressos, solicitar confirmação da existência do par. Finalizar:

- Tenha um bom show e boa sorte.

Depois que fiz esse roteiro é que percebi, já tarde, após muitas boas sortes desejados, que sendo limitado o número de prêmios, desejar boa sorte a todo mundo é não desejar sorte a ninguém.

Mas continuo desejando, por educação, polidez e simpatia.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Jacinildo

Jacinildo Silva e Souza, 32 anos, divorciado, pai de dois, mendigo. Viciado em álcool e crack. Abandonou a família quando o mais novo fez 16. Seguiu. Morou nas proximidades do Viaduto Sarney por 2 anos, desiludido, foi para o Ayrton Senna, "me dá mais orgulho", dizia. Vivia no Centro da cidade, embriagado, pedindo trocados para o próximo gole. Conseguia-os, invariavelmente. E bebia, bebia o que dava, comia o que sobrava, e dormia o que conseguia. A vida que podia ter. Ou, a que queria ter.

Jacinildo sabia inglês. Tentou emprego numa multinacional, ensino médio completo, inglês nível intermediário (não colocava avançado pois não tinha comprovações "diplomáticas" disso). Reprovado, pois não possuia um endereço válido. Onde morava, uma comunidade invadida, a prefeitura não reconhecia ruas e números de casas.

Tentou outras oportunidades, quatro, cinco, o mesmo motivo. Desistiu. Se não reconhecesse o local onde morava, o emprego não poderia ser digno de suas capacidades, dizia. Começou a beber mais do que bebia. Chegava tarde em casa. Até que passou a não chegar. A mulher trabalhava em dois períodos, ganhando o mínimo para criar os filhos. Jacinildo ajudava com bicos. Na média, alimentavam bem os dois rebentos, dando o mínimo de roupas e diversão. Este último quase inexistente. Jacinildo dizia a seus filhos, em verdade, doutrinava os pequenos, o que ouvira de seus pais: "A vida vai te fuder, tenha o mínimo para adquirir vaselina suficiente, para a dor ser mínima".

Laurison e Diego viveram com isso na cabeça. Laurison se dedicou o quanto pôde, se tornou gerente de uma grande loja de varejos. Diego cursou preparatórios para o vestibular e conseguiu ser aprovado em administração em uma faculdade pública.

Jacinildo vivia mendingando pela cidade. Quarenta e oito anos, e ainda em dúvida se teria o suficiente para jantar no dia que se espreguiçava no meio dos prédios do centro. Era preciso lutar pelo café da manhã primeiro. Do outro lado da cidade, Diego e Laurison acordavam, os irmãos dividiam um terreno, com duas casas, onde cuidavam da mãe, Liana, desde que o mais velho completara 21 anos e pôde financiar o imóvel.

Às 8 horas da manhã, Diego passa de terno e camisa engomada no lado par da rua São Sebastião, esquina com a Àlvares Cabral. Do lado de lá, na A Única, Jacinildo tenta vencer a batalha para um café da manhã bancado por alguém que tenha consciência suja o suficiente para saber que o seu dinheiro banca a miséria que o cerca. Diego não vê o pai há 10 anos. Jacinildo olha para todos os engravatados com desdém. Ele, de alguma forma, sabe algo que aqueles não sabem. Talvez ele tenha desvendado a forma de se vencer o jogo. Talvez esteja embriagado demais para saber que perdeu. Mas, com certeza, julga-se feliz demais para reconhecer qualquer derrota.

E seguimos tentando ganhar mais dinheiro que qualquer Jacinildo poderia gastar em dez vidas.

04 de janeiro de 2016

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Já é Natal

São pernas que correm a comprar,
andam atrás do que nem precisam,
só para gerar os cupons de acesso ao sonho
do carro que já têm,
para compensar o vazio de viver.
E enchem a urna de esperanças vazias.

Correm pernas a prestações
à perder de vistas.
Vestidos, saias, calças,
shorts e bermudas
e novos vestidos,
sapatos, tênis e sandálias,
um chinelo aqui e ali.
A nova TV, a roupa nova,
tudo para estarem bem na hora de se desiludirem
do prêmio que não veio.
Correm prestações,
dez sem juros,
doze vezes,
a cada lá e cá
pernas que compram a liberdade falsa de Punta Cana,
Natal, Salvador e outras praias,
enquanto vivem presas aos boletos.
Pernas a prazo,
pernas à vista,
pernas a perder de vista.
E o papai Noel lá,
sentado em sua poltrona sem posse,
usando suas pernas como poltrona
para crianças iludidas.

Já é Natal!

30 de novembro de 2018