quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Alice no país das maravilhas

Ela nasceu no chão da sala,
vítima talvez do descaso,
uma negativa repetida outras vezes,
o não que negava a loucura,
mas ela estava lá,
crescendo,
desenvolvendo o que dava,
dentro da barriga apertada pelo cinto
repetidas vezes.

Um treco saindo para o mundo,
sem respirar,
sem respirar,
a vida nova já perdida,
até o choro,
que outro choro se segurou para não seguir.

Foi batizada.
Cresce feliz,
encapetada
como toda criança esperta,
que logo questionará, adolescente,
o mundo a sua volta,
as decisões que tomam por ela.

E num dia desses,
lá para o futuro,
passeando pelos becos
na região proibida da cidade,
verá um livro com seu nome
e então se questionará
"Onde é esse tal país
cujas maravilhas prometem
com meu nome na capa?".

O futuro é incerto para essa Alice.
Talvez não haja maravilha alguma.
Talvez não haja sequer país.

27 de setembro de 2018

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Sete Anjos do Apocalipse

Era meio dia, um sol de rachar concreto de areia do Sergio Naia, e ele estava lá, com seu terno preto, sua corneta, a Bíblia surrada embaixo do braço suado, suor por todo o rosto, em senhor de cabelos grisalhos, negro parrudo, voz imponente, conclamava, aos berros, o arrependimento dos infieis que se afastaram da lei divina. Todo dia ele fazia a mesma coisa, por horas e horas. Ninguém parecia ligar. Ele não ligava para quem não ligava. Continuava a gritar, tocar sua corneta e balançar o livro ensebado no ar.

- ARREPENDEI-VOS, DESCRENTES! O FIM ESTÁ PRÓXIMO! ARREPENDEI-VOS E PROCUREIS O SENHOR JESUS CRISTO, NOSSO SALVADOR!

FÓÓÓÓÓÓÓÓ, aquela corneta maldita, que me jogou ao chão, certa vez, tamanho o susto. Ele não escolhia hora, não importava se tinha gente perto, tocava com força, como um Armstrong, olhos esbugalhados, bochechas quase estourando. FÓÓÓÓÓÓÓÓÓ.

- O FIM ESTÁ PRÓXIMO!!! ELE ESTÁ VOLTANDO! OS ANJOS DO APOCALIPSE LOGO ESTARÃO ENTRE NÓS E SÓ OS ARREPENDIDOS SE SALVARÃO!

E era isso, todo dia, na hora do almoço. Eu sei que poderia escolher outro restaurante, mas aquele era o mais perto do trabalho, e o mais em conta. Ele que poderia escolher outro lugar para o seu culto ao fim dos tempos. Esperava que isso ocorresse. Nunca ocorria. Todo dia, lá estava ele, o seu terno, o seu livro e a sua maldita corneta.

Certa vez, eu estava passando por ali, era meio de tarde, um dia fresco, se bem me lembro, e uma jovem, devia ter seus 16 anos, passou junto a mãe por ele, que não perdeu a oportunidade.

- ESSAS JOVENS, VESTIDAS COMO PROSTITUTAS, ARREPENDEI-VOS! AINDA HÁ TEMPO! O FIM ESTÁ PRÓXIMO!

Aparentemente, a mãe da garota percebeu a indireta, voltou, parou na frente dele, com olhar de fúria, mesmo distante eu sentia o ódio, encarou-o por alguns longos segundos e mandou um tapa na cara.

- Prostituta é a senhora sua mãe, seu filho da puta. Tome conta da tua vida e deixe os outros escolherem o caminho a seguir. - E foi-se, puxando a filha.

Ele ficou uns segundos absorvendo o impacto. Arrumou-se, sem graça. Ajeitou a Bíblia. Segurou a corneta com força. Respirou fundo, uma, duas, três vezes. Encheu os pulmões de ar. FÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓ.

- ESSA GERAÇÃO ESTÁ CONDENADA!!! MÃES QUE DEFENDEM A DIFAMAÇÃO DAS FILHAS. ARREPENDEI-VOS. O FIM ESTÁ PRÓXIMO. OS ANJOS DO APOCALIPSE CHEGARÃO E LEVARÃO TODOS OS INFIÉIS PARA O INFERNO.

Em semanas, aquilo havia sido a melhor coisa que me acontecera. A mãe defendendo a honra da filha. A armadura impenetrável do homem crente em uma profecia que estava longe de ser concretizada. O tapa. O momento constrangedor. Aquilo tudo dizia muito sobre a nossa sociedade. Mais do que qualquer um notara. E os dias seguiam. FÓÓÓÓÓÓÓÓ.

Certo dia, fui almoçar, um silêncio. Pessoas transitavam, para lá e para cá, se trombando, conversavam entre si, mas, um silêncio. Olhei em volta. Silêncio. Entrei no restaurante, fiz meu prato, desta feita, sentei-me no balcão, olhando para a rua, um silêncio. Ele não estava lá. Um silêncio profundo. Nada de corneta. Nada de fim.

Longe, muito longe dali, os céus de Jerusalém se enegreciam em pleno fim de tarde, a uma velocidade assustadora. Raios partiam os céus ao meio, num clarão de assustar. Três raios desceram feito míssil, cada um atingindo o templo de cada uma das três maiores religiões do mundo, cujo berço se fazia ali. Aparentemente, o fim do mundo deveria começar de onde foram escritos as profeciais sobre ele.

O céu abriu-se em escarlate. Desceram, então, os sete anjos do apocalipse, e por não estarem acostumados a gravidade terrestre, viram a aceleração da descida aumentar drasticamente a velocidade de chegada e se espatifaram no chão.

Os céus se fecharam. A tarde voltou ao normal. E enquanto eu pagava a conta do almoço, ouvi lá da rua.

FÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓ.

Não houve o fim dos tempos com aqueles anjos. O fim estava próximo, ou talvez, nos próximos.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Outra do Clóvis

Atravessei o corredor até a metade,
parei,
apertei o botão,
esperei.
Esperei...
esperei...
esperei...

(...)

Esperando,acordei suando, na minha cama.
Eu nem estava no apê dela.
Sonhei sozinho em casa,
a saudade que senti
de estar com ela.

E foi o Clóvis quem me acordou do sonho,
enquanto tocava Pink Floyd no rádio.

14 de setembro de 2018

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Aos 33

Os olhos começaram a falhar já na adolescência.
Eram olhos de águia, lembro-me bem.
Vizualizavam o ônibus que vinha a duas,
três, quatro quadras antes do ponto.
E então foram piorando.
Hoje ressacam.
O olhar torna-se turvo.
O cansaço é recorrente.

Por ser criado para ser o exemplo,
fui o exemplo do que pude ser.
Sempre estudei, li e busquei saber mais do que me cobravam.
Da escola pública, fui para uma faculdade pública.
A depressão começou naqueles dias.
Depois veio o que me tirou do sonho.

Vinte e dois, auge,
festa, cervejada,
uma brincadeira errada,
um chute que saiu pela culatra,
o joelho esquerdo.
Meses de incógnita,
médicos e médicos consultados,
e o joelho saindo do lugar
uma e outra e mais vezes.
O joelho direito se desgastou
por poupar o esquerdo.
Então os dois começaram a doer
mais do que eu pudesse aguentar.

O sonho da faculdade pública se foi.
Ficou a luta para o término do curso,
sem custos.
Prova, nota,
bolsa integral.
Erro de professor,
a raiva, a perda.
Quase desistência,
insistência,
outra bolsa integral.
Tudo pelo sonho compartilhado com quem,
perto de ver o sonho concretizado, morreu.

Vinte e muitos,
rinite,
dermatite,
depressão.
Os joelhos doíam mais do que pensava.
As costas passaram a sentir o peso dos sonhos não realizados.
A imagem do pai, ídolo, patrão, melhor amigo,
morto na cadeira de trabalho,
faziam-se mais presentes do que se queria.
O sonho compartilhado se foi,
pela confiança cega em quem não se devia confiar.

E a falta de vontade era toda a falta de vontade.
Na ânsia de não perder os dias com a mãe,
deixei-me ficar em casa mais do que deveria.
O conflito entre avó e mãe.
Mãe e filha.
Uma cuidando do filho da outra,
que dizia cuidar do resto,
e não cuidava de fato de quase nada.
A depressão pesando mais e mais.

A não vontade de continuar passou a ser amiga de copo.
Todo gole a mais era uma sessão a mais de choro
e declaração pública do vazio sentido,
da depressão presente.

Logo vieram as demais dores.
As costas se agravaram.
Chegaram as do pescoço.
Pernas. Pés.
Mãos paralisadas.
Braços dormentes.
E ela, sempre ali, à espreita.
O choro recorrente das noites de álcool.
Ele, o quase único amigo.

E aí vieram os filhos que não pedi e que nunca os tive.
Virei o substituto daquilo que não puderam ter.
Fui me assumindo assim, por não saber ser de outra maneira.
Mas logo tudo pesa, com ela ali sempre de mãos dadas.
Tanta coisa na cabeça,
tanta besteira que nem posso dizer.

Às vezes quero fugir com eles.
Tirá-los do ambiente tóxico criado ao redor.
Dar a eles um lugar onde eles sejam as estrelas,
e não outras pessoas de um lado de lá de uma conexão,
uma tela brilhante que cabe na palma da mão.
Eu queria ser mais pra eles,
porque sei que, no fundo, quem deveria ser por eles
apenas quer ser um pouco mais que o outro que deveria ser por

eles.
E isso é pouco demais para o tanto tanto tanto que eles

realmente merecem.

Mas existem os outros dias.
Os dias em que eu queria fugir deles.
Sumir.
Desaparecer.
Esquecer.
Então entendo que não é deles que quero sumir,
é da origem deles.

Um eu neguei ser padrinho,
por não querer ver uma criança sobre meus cuidados,
ser batizada numa igreja que permite padres estuprarem crianças

sobre seus cuidados.
A outra eu vi negarem a existência fetal com total cara de pau,
e nascer no chão da sala, como se não fosse nada,
"tem um treco saindo de mim", sempre lembrarei essa fala,
e que se não fosse por mim, não respirava,
seria mais um número na história de quem gritava.
Mais um, porque seria o segundo caso.

E eu ainda só não dei fim nisso tudo por conta Dela.
Se eu não soubesse que logo me faria casado,
se eu não tivesse alguém como Ela do meu lado,
eu nem estaria aqui pra esse desabafo.

Fico cá pensando, eu com meus 33 anos
sem vontade de quase nada, sem ter emprego e me embriagando,
que, talvez, tenha sido a desilusão no mundo
que levou, 1985 anos atrás, o ícone do cristianismo,
ciente de tudo (já que deus) que se fazia contra ele,
deixar com que as peças se movessem,
e que o julgamento viesse,
que a condenação sobreviesse,
e que sua morte se cumprisse.

Talvez ele já estivesse cansado demais, como eu.

Mas, para o azar de meu parceiro de idade,
não foi dado a ele o direito de amar alguém.
E ele morreu sozinho, na sua cruz, agonizando por toda a

humanidade.
Eu também me importo com a humanidade,
mas não morreria por ela.
Ela é diversa demais, com gente perversa demais,
para que eu pudesse morrer por todo mundo.
Eu não sou tão inocente assim.
Se eu for morrer,
eu vou morrer por mim.

Mas não ainda aos 33.

14 de setembro de 2018

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A Pátria Mãe Nada Gentil

Tiros!
Tiros contra uma caravana.
Tiros que tinham objetivo, não alcançado.
Tiros que feriram a combalida democracia.
Tiros!

Esquerda, direita
esquerda, direita
direita, esquerda
direita, esquerda

Uma mão salta da multidão
e de inopino atinge o candidato
que, nos braços do povo,
erguido por seus adoradores,
curva em dor.

Facada!
Facada no candidato.
Uma facada que tinha objetivo, alcançado.
Uma facada que feriu a agonizante democracia.
Facada!

Direita, esquerda
direita, esquerda
esquerda, direita
esquerda, direita.

E pedem guerra,
e pedem vingança.
E dizem que é falso
e riem do ato.

Direita, esquerda
esquerda, direita,
direrda, esqueita,
esqueita, direrda.

E deu no jornal:
“A democracia está à beira da extinção”.

Está tudo errado no Brasil.
Está tudo errado no Brasil.
Esquerda, direita
direita, esquerda…

07 de setembro de 2018

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Sem manual

O grande problema da vida
é que você já nasce num mundo pronto.
Te empurram do carro em movimento
num lugar onde nunca esteve,
sem conhecimento algum da vegetação,
sem conhecimento algum de geolocalização,
e você precisa achar o seu rumo.
Mas, o seu rumo deve estar dentro dos rumos pré-existentes,
mesmo que você não saiba os rumos pré-existentes.
E quando você tenta criar um novo caminho,
desbravando com as mãos a mata fechada,
eles virão atrás de você,
com foices,
facas,
pistolas,
fuzis,
bazucas
e tanques,
tentando te fazer desistir,
minando a sua vontade,
até que não exista mais nada
até que as mãos já não consigam abrir caminho,
até que o que reste seja se entregar
e voltar de mãos dadas ao caminho que eles traçaram.
Sem se esquecer que suas mãos estarão atadas
e a sua boca amordaçada.
O grande problema da vida
é que é quase impossível ser você mesmo,
mais ainda:
é praticamente impossível descobrir quem você é de verdade.

07 de outubro de 2015