segunda-feira, 30 de abril de 2018

Sentença

Sua irmã apresentou a filha recém-nascida, toda enrolada em sua roupinha com aquele cheiro acolhedor que só os bebês possuem e que se perde com o tempo. As mãozinhas enrugadas seguraram o seu dedo, ela olhou fixamente para os olhinhos que custavam abrir e sentenciou:

- Ela vai morrer.

A irmã subitamente puxou para si o pacote de vida fresca e abraçou-o forte, o tempo fechou, nuvens carregadas cobriram o sol que brilhava há instantes, o cunhado partiu para cima da jovem "O que você disse?", "Você está louca?" vociferou a mãe de primeira viagem.

- Todos vamos morrer, disse.

Os olhos enraivecidos viraram mãos pesadas a empurrar para fora da sala a jovem tia, "Saia já sua maluca!", "Vamos, fora!", e outros tantos gritos seguidos de xingamentos.

Eis que a maior obviedade, o fato mais absurda e repetidamente comprovado na história da humanidade havia sido rechaçado por quem estava distante da realidade.

Ela saiu a caminhar pela rua, ouvindo um rock antigo, enquanto as primeiras gotas caiam sobre todos. Como a morte um dia cairá.


23 de abril de 2018

quinta-feira, 26 de abril de 2018

Câncer Terminal

Ajoelhou-se, olhou pro céu, pensou em Deus e chorou. "Não, não vão dizer que uma ideia inventada foi o responsável, que essa ideia quis assim. Não mesmo". Apontou a arma para sua cabeça e gritou "Seja o que Eu quiser".

Morreu ao lado do bilhete com as mesmas últimas palavras escritas. Livrou-se do sofrimento por conta própria.


23 de abril de 2018

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Todos os dias

Todos os dias,
pelos caminhos e descaminhos da vida,
eu vejo e penso em coisas que preciso.
O café para as manhãs de mau humor
e as tardes de sobrevivência.
A cadeira nova para aliviar a dor nas costas
que meu velho e carcomido assento provoca.
O fone de ouvido para as músicas
que me distraiam do mundo que corre lá fora.
Os óculos novos para as retinas desgastadas.
O tempo que passa e que se vai.

Todos os dias
pelos descaminhos e caminhos da vida,
eu vejo e penso em coisas que preciso
para sobreviver.
Mas nem tudo o que preciso eu quero,
nem tudo que me traz sobrevida
me faz realmente viver.
E todos os dias desejo outra vida,
a de dormir ao teu lado
e acordar com você.

23 de abril de 2018

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Sobre sono e depressão

Eu durmo, mas não sou muito fã. Acho que nunca fui.

Dormir sempre me pareceu como uma espécie de perda de vida. Você dorme, o mundo não para, as experiências estão lá, acontencendo, enquanto você está fora de tudo. Eu nunca gostei muito de dormir.

No começo da vida universitária, longe do controle dos pais, passava dois, três, até quatro dias acordados, ou então sob a égide da doutrina dos cochilos.

Por isso, quando durmo demais alguma coisa não está legal comigo. Algo de errado está se passando. Começo agora a perceber que esse é um padrão que se repete há, pelo menos, uns quatorze anos. Quase a metade do que vivi. Foi no princípio de meus surtos depressivos, quando eu já colocava em dúvida várias das decisões tomadas e caminhos seguidos. De lá pra cá, em especial nos últimos anos, as coisas só pioraram.

O sono em excesso representa a tentativa da busca pelo isolamento, pela paz interior através do convívio com meus eus.

Quando durmo demais, em verdade, estou tentando comunicação comigo mesmo, pois só no sono, no exílio dos sonhos, consigo reunir-me em paz. Pelo menos era assim.

Mas nem assim consigo mais me reencontrar. Nem assim.


19 de abril de 2018

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Roupa de dormir

Tinha acabado de tomar o banho pré-soninho e andava pelo quarto quando sua mãe perguntou:

- Posso saber onde está sua roupa de dormir?

Olhando terno para os olhos da mãe questionadora, apontou para o corpo dizendo:

- Minha roupa de dormir é minha pele sedosa. Hoje eu vou dormir nu.

E ele só tinha cinco anos de idade.


11 de abril de 2018

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Eu não sou bem

Aí digo a ela que não estou bem.
Minto para ela se sentir bem.
Porque é mentira dizer que não estou bem,
há tempos "estar" deixou de ser o verbo correto.
Eu não sou bem.
Não sou bem há quatro, cinco anos,
não me vejo mais a sorrir sincero,
não me vejo no futuro distante,
não me enxergo velho com netos e a família reunida
num almoço de domingo,
com as crianças correndo, chorando e gritando,
e os velhos sentados,
rindo do tempo que passou
e que passará.

Eu não sou bem.
Mas quando estou com ela eu fico.
Eu esqueço do que me faz mal.
Eu esqueço de tudo o que vivo.
Eu esqueço da minha incapacidade
de pensar o futuro,
de superar isso tudo,
de me ver outra vez feliz.

Eu não sou bem,
e só espero que isso um dia possa mudar,
antes que não haja tempo,
antes que o tempo acabe,
antes que eu me desista.

10 de abril de 2018

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Eu não sei

Há quanto tempo eu não sei o que me é ser bem?
Há quanto tempo eu me perdi da sanidade
e deixei-me trilhar esse caminho obscuro
onde dia, noite, tarde, primavera
é tudo um intenso inverno que não passa,
que não me deixa?

E esse cheiro? E essa dor?
E essa falta de vontade?
Essa falta de vontade.
Tudo é falta de vontade.
Tudo é não mais querer.
E tem tanto por querer lutar.
E tem por quem viver.

Mas o que eu posso dizer
se já nem sei há quanto tempo
eu não sei o que me é ser bem,
se eu já nem sei há quanto tempo
eu me perdi da sanidade.
Apaguem essa luz!

08 de abril de 2018

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Trezentas contra uma

Ele era um defensor ferrenho do início da vida já na fecundação e, por isso, militava ferozmente contra o aborto em qualquer circunstância. Também vociferava contra os menores infratores, dizendo que deveriam ser presos e que, eventuais defensores 'dessa corja', deveriam levar os 'bandidos pra casa'.

Certa feita, numa mesa de bar, sentado com amigos de longa data, círculo que foi desfeito após o colegial e que agora se reencontrava, quase vinte anos passados, ao ouvir um amigo defender o aborto em algumas ocasiões, levantou a voz a defender seu ponto de vista.

Outro amigo, depois de uma golada generosa na cerveja gelada que molhava cada palavra ali dita, resolveu então questionar o caríssimo companheiro:

- Então você defende que a vida começa com a fecundação, certo? Transou, o óvulo encontrou o espermatozóide veloz e matreiro, pá! Vida, e a partir daí já nasce todos os direitos inerentes a ela e, por isso, deveríamos defender esse embrião, a ferro e fogo, em nome de Jesus.

- Exatamente! A vida começa a partir da fecundação e ponto. Aí vem esses esquerdopatas-comunistas-gayzistas-abortistas dizer que é relativo, que é só um conjunto de células, que não é vida ainda. Um absurdo.

- Ok, ok, eu entendi seu ponto. Agora eu te pergunto, imagine a situação hipotética de um incêndio em um prédio. Você está lá e pode salvar apenas um: uma mulher, que está presa numa sala e morrerá se você não ajudar, ou um balão criogênico com trezentos embriões fecundados apenas esperando a data do procedimento de implantação no útero das futuras mamães. Qual você salva?

- Como qual eu salvo? Eu salvo a mulher, oras.

- Então você salva uma vida em detrimento de trezentas?

- Não, claro que não. Eu salvo a vida que...

Eu já nem ouvi o resto da argumentação. Tomei o gole que me restava da cerveja, deixei um dinheiro extra na mesa e fui mijar, antes de ir embora.

Esses encontros de antigos colegas nunca resultam em nada positivo mesmo.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Sono

à Lady Anne MSR Celani

Vê-la dormindo,
deitar os olhos sobre seu corpo nu,
descansar a vida do dia-a-dia
na paz do seu repouso.

Sentir no íntimo
a sorte de poder tê-la comigo.
Sentir o sonho real
desenhado na sua pele.

Os olhos de tão pacíficos
choram a real possibilidade
de uma impensada felicidade.

Quanto fiz de bem, sem saber,
para merecer o que recebo
e receberei, em breve,
toda noite,
ao meu lado,
na cama de minha paz serena.

Quanto riso sem fim.
Quanto arrepio sem fim.
Quanto amor.

O mundo lá fora pegando fogo,
eu e ela também em chamas.
Mas cada fogo tem o seu espírito.
Cada chama tem o seu propósito.

O nosso é ser feliz,
como der,
sempre,
até que o fim nos chegue,
quando a chama da vida se apagar.

E quanta paz em seu corpo nu
dormindo o sono do pós-orgasmo.
Que linda será a vida
quando esse for o quadro
que meus olhos fitarem,
antes do corpo se entregar ao sono que agora me falta.

02 de abril de 2018