segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Confiança

- Mas,  eu não consigo. - Ele disse.
Era manhã de domingo, ele ainda sequer tinha fechado os olhos. Virara a madrugada bebendo e fumando seu cachimbo amargo. Pensava na vida, no universo e tudo o mais. Não chegou a conclusão alguma.
- Eu simplesmente não consigo, repetiu.
Esses diálogos entremeavam seus dias repetidamente nos últimos tempos. O caminho seguido não era exatamente o que sonhara nos tempos de adolescência, entregara-se a necessidade da sobrevivência. No percurso, acabou ganhando mais dinheiro do que poderia gastar, descobriu que ele traz sim felicidade, e drogas e falsos amigos e tudo o mais. Era só preciso pagar a quantia certa. Mas, faltava algo. Como sempre falta.
- Eu já tentei mais vezes do que posso me lembrar e não consigo. Não mais.
Já era a quarta vez que limpava o cachimbo e o preparava para mais uma boa quantidade de fumo. Sabia que isso teria consequências para o corpo tão logo adormecesse. Mas, até acordar, isso era algo que o seu eu do futuro teria que lidar, não ele, ali, naquela hora.
- É sempre essa dificuldade, eu nunca sei. Na hora do embalo você deixa, mas, sempre tem essa questão. Eu não sei. Eu só sei que não consigo mais.
Quanto de álcool era preciso para derruba-lo ao sono? Era o que queria. Quando dormia, parecia-lhe mais algo cujo crédito deveria ser dado ao cansaço em si que ao porre. Simplesmente apagava, ainda com o copo em mãos e acordava sempre com vontade ainda em órbita. Por dias chegava mesmo a cansar de beber e, mesmo assim, o sono não o queria abraça-lo. Era desesperador.
- O grande problema é que eu até quero, eu me forço a isso, mas, invariavelmente, a prova de que estou certo em não fazer chega, invariavelmente.
Vivia sozinho desde o término do seu noivado, meses antes. Não tinha cachorros, gatos, pássaros. Os únicos animais que entravam na casa vinham já mortos, cortados ou fatiados. Não sofria com isso. Não sentia saudades. No máximo, uma necessidadezinha de contato, mas, não contato corpo a corpo, apenas conversa. E isso a internet lhe provia de sobra. Era um baita personagem para aqueles que o interpelavam. Sabia ser simpático. Vestia bem a roupa e a máscara. Bastava ser a pessoa certa a olhar pela janela.
- Em dias assim é ainda pior. Eu fico pensando e repensando todo mundo. Cada criatura viva que eu encarei nessa vida e dei um crédito. E todos os que gastaram esse crédito. Praticamente todo mundo. Praticamente todo mundo.
Queria ser diferente. Queria mesmo.
- E é justamente nesses dias que eu queria não ser assim, queria ser diferente. Confiar em alguém, cem por cento, sabe? Eu já estou cansado de ficar tendo esses diálogos comigo mesmo. Mas isso é hoje, amanhã outro estará aqui e pode ser que eu mude.
Acabou adormecendo no sofá, com o copo na mão, a imaginar um eloquente discurso para o mundo, ao vivo, em rede mundial. Teve sorte do cachimbo apagar antes que as cinzas se espalhassem pelo tapete persa da sala. Não se sabe como acordou.

23 de fevereiro de 2017

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Insônia

Crianças choram no andar de baixo.
Pássaros gritam o dia na janela.
carros.
Uma criança passa gritando pela porta do quarto.
É dia já.
É dia já e eu sou todo noite.
Enfio mais e mais embaixo do travesseiro extra.
É dia já,
o calor me lembra.
Sufoco.
Crianças continuam chorando.
Pássaros não querem me deixar esquecer.
Carros.
É dia já.
É dia já
e eu só queria uma horinha de sono.
Uma horinha só.
Só para poder sonhar com ela
que não pude ver.
Só para sonhar com ela,
uma horinha só.

16 de fevereiro de 2017

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

De quando o Celso morreu

Morreu um amigo.
Não, não sei se amigo.
Há muito que o conceito se restringiu sobremaneira.

Foi amigo de meu pai,
que já havia ido.
conhecia-o há um tempo bom,
desde que me lembro.

Morreu.

Mas o que me fez refletir
foi a minha reação à notícia.
Morreu.

Ok.
Todos morrem.
Teria a morte do meu pai,
tal como me foi apresentada,
o fim da tristeza diante de todas as outras?

Afinal, não morremos todos?

2015 - no dia em que o Celso Garcia morreu

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Faculdade mental

Ela só queria administrar sua própria vida,
mas não podia sequer entender sua própria mente.
"Freud explica", diziam.
Mas era foda explicar.

Sabia do seu direito,
mas, como colocá-lo em prática
se fisicamente lhe era impossível?

Os médicos lhe diziam não poder ajudar.
Os mediuns não a entendiam.
Via sua vida exposta no jornal,
nos intervalos comerciais,
com o preço abaixo do mercado
escancarado nas vitrines da moda.

Cada pedaço de carne
meticulosamente operado
e manipulado
para dar um aspecto mais belo,
decorada com belos ornamentos,
um sobre o outro.

Da vitrine,
seus olhos míopes procuravam onde estar
e o coração pulsava
a química do não saber amar.

Era tola, era ela
em sua plenitude,
sem espaços entre si.

Deitou entre livros e sons
e deixou-se ser personagem
na vida de outra pessoa,
ela que só queria administrar
a sua própria vida.

11 de fevereiro de 2017

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Where is the hope

Eu olho prum lado, o caos.
Eu olho pro outro, a desordem.
Tento seguir em frente,
mas é tanto entulho,
tanto lixo.

Os passos levam a vontade,
a luta fica pelo caminho,
transmorfa em desesperança.

Os saques acontecem aqui e ali,
lá e acolá.


A confiança virou artigo de luxo.
A esperança já não existe.
Só resta o medo.



E há tanto ainda por caminhar
depois do vento que nos devolveu ao começo.

Os espinhos daqui estão maiores,
as pedras parecem inquebráveis,
os pés afundam,
o corpo tenta e se perde.

Não há para onde escapar.
Não há para onde fugir.

Então me deixem aqui,
que eu vou secar o litro
até que a morte me leve
e dessa dor, enfim,
quem sabe eu não me livro.

11 de fevereiro de 2017

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Diálogo ameno sobre ter filhos com conclusão nada comum

Se a gente pensa bem, acaba por concluir que o melhor é não ter filhos, ela disse. Não sei, retruquei. Acho que nem é preciso pensar bem, só de pensar a conclusão é óbvia. Se a gente pensa bem, conclui que seria melhor nossos pais não terem filhos. Se o pensamento se aprofunda, a conclusão chega aos avós. Um pouco mais, e já estamos ali por volta de Adão e Eva. Mais um tempo com a mão na cabeça, sentado, no vaso sanitário, e concluímos que Deus deveria ter parado no quinto dia, sobrando-lhe dois para o descanso.
Imagina só que linda a Terra seria.
As pombas poderiam voar e cagar onde quisessem, quando quisessem, sem ninguém julgando e querendo mata-las por ter uma nasca de merda branca no parabrisa do seu queridinho carro.
Não ia ter pomba traficante.
Correio.
Gira.
Deus deveria ter parado no quinto dia, só assim pomba seria, de fato, um símbolo da paz.

13 de janeiro de 2017

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Entre o vício e a loucura

E o escrever me chega sempre como esse intermediário entre o vício e a loucura. Entre o querer e não dever. Entre o necessitar e o evitar. Dói. O sono vira passageiro de uma montanha-russa que não sai do lugar até cair de uma só vez na descida sem trilhos ao fim. Acorda-se sem saber o que sonhava. Desperta-se para o mundo que se passou pelo inconsciente, como se fosse uma obrigação saber viver a vida que não se vive. Dói. O verão congela os dedos nulos. O inverno ferve os neurônios ativados por criptonita. Dói. Luta entre necessidades opostas. De um lado o escrever, vício ou loucura, de outro o sono, necessidade do corpo. O dia ameaça com seus raios de sol apontando no horizonte. Os compromissos comprimem a cabeça, o peito, os pulmões se enrijecem. É preciso deixar fluir. E quando se prende, algo morre em mim. Alguém de mim se suicida, prendendo a respiração, até que o ar me falte e sem notar acordo já com o dia a pino. O alarme gritando insanamente as palavras que me coibi de colocar no papel durante a madrugada. Dói. Os passos duros me lembram o vago do que pensava. Os olhos nulos me apontam para as quinas dos móveis no caminho do banheiro. Dói. O banho derrete a alma, me estapeia a calma. Eu choro. Eu me perdi. Eu fui incapaz. Eu me deixei morrer. Dói.

E todo dia o escrever me chega manso, como um certo intermediário entre o vício e a loucura, e a única resposta é não viver.

05 de janeiro de 2017

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Sem machismo

Abriu cuidadosamente as pernas da mulher que conhecera há algumas horas, num daqueles bares madrugais que frequentava.

Ela quem propôs sair do local para ficarem mais "íntimos". Foram ao apartamento dele, padrão classe média, num bairro novo da cidade. Ela ficou impressionada já no carro com a calma e o cavalheirismo dele, que abriu a porta, ajudou-lhe com o cinto e foi até chegar ao destino alisando o joelho dela (um de seus pontos fracos). Sabia dominar o momento. Com sua voz mansa, provocava-a, contando o que desejava fazer com ela ao chegarem.

Já no elevador se atracaram. Ele mordeu com força o seu pescoço, esperando a reação dela. Surpreendentemente, aquilo a atiçou ainda mais. Devolveu a mordida. Forte. A porta do elevador abriu quando uma mão era direcionada ao meio de suas pernas. Molhado. Entraram, e as roupas foram ficando pelo chão.

Ele pediu que ela o aguardasse, pediu que ficasse nua, deitada na cama e assim ficasse, em silêncio. Ela obedeceu.

Começou a ouvir música vindo de onde era a sala. Jazz? Blues? Era um desses sons de gente chique, pensou. Estava ficando cada vez mais excitada com a situação. Não sabia o que havia nele, mas, estava totalmente dominada pelo desconhecido. Ouviu passos.

Ele, na cozinha, preparava uma bandeja com os utensílios que usaria. Tudo metodicamente posicionado. Abriu o vinho, pegou uma taça, encheu, bebeu. Parecia estar atrás de algo faltante. Procurou nas gavetas, nada, passou pela porta do quarto, rumo ao quarto extra que fez de escritório. Achou o que procurava, voltou à cozinha. Colocou o objeto na bandeja. Deixou o vinho na pia e foi para o quarto.

Viu ele passando pela porta do quarto e depois voltando rumo à cozinha. Achou que ele fosse entrar. Aguardou. Ouviu passos vindo rumo ao quarto e um tilintar qualquer, como que de aço batendo em aço.
Ele entrou com a bandeja coberta por um pano preto, colocou no criado-mudo, abriu uma gaveta, retirou alguns utensílios. Deu um beijo na boca dela. Mordeu a coxa com força, aquilo a fez ficar ainda mais molhada. Amarrou uma perna e prendeu à cama, outra perna, braços, ela ria perguntando o que ele faria com ela. Ele nada respondia, apenas olhava fundo nos olhos, com seu olhar penetrante. Ela estava gostando. Finalizou os preparativos com uma venda e pediu que ela ficasse quieta, em silêncio.

Ela estava em extase, não sabia o que viria a seguir, mas, adorava o clima de tensão, de mistério, ouviu novos tilintares de aço contra aço. De repente, sentiu algo gelado na coxa. Uma faca? Arrepiou. Logo depois sentiu o hálito quente encostar em seu sexo. Língua. Rebolou de leve. Ele abriu cuidadosamente as pernas dela e começou a fazer o que mais gostava. Ela vibrava, os músculos de suas pernas contraíam em desejo.

Quando ele sentiu que ela estava próxima do clímax, acelerou os movimentos da língua, ela ameaçou gritar, ele a mandou gozar em silêncio, os vizinhos poderiam reclamar. Ela se segurava, até que começou a estremecer, ele sabia que havia alcançado o seu primeiro objetivo. Ela começava a gozar quando sentiu uma dor escruciante. Urrou. Ele se afastou e ficou a observar. Da artéria femoral dela um mar de sangue inundava o lençol. Aos poucos se calou e permaneceu emudecida.

Ele então pegou uma pequena faca na bandeja, sentiu o fio de corte, e fatiou o sexo dela, colocando em um prato. Acendeu o maçarico culinário, torrou um pouco a carne recém cortada, lançou algumas pitadas de sal com temperos que possuía na bandeja. Levantou-se, foi até a cozinha, pegou a garrafa de vinho, encheu uma taça, sorveu um longo gole, deixando o líquido tomar-lhe toda a boca e engoliu. Pegou um pedaço da carne dela com as mãos, mastigou com delicadeza, deixando, assim como o vinho, que toda ela tocasse cada uma de suas papilas gustativas. Engoliu. E de súbito, exclamou para si:

- Puxa, que gostosa!

04.01.17