quinta-feira, 27 de abril de 2017

Na mesa do bar

- É impressão minha, ou estamos ficando mais e mais estúpidos quanto maior é o avanço tecnológico?
E ninguém respondeu, com suas cabeças imersas em realidade virtual.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Deus e o Estado (não inédito)

Não há no mundo animal outro que se ajoelhe diante da ideia de um ser superior imaginário (excluem-se, portanto, os donos de animais domésticos) que não o Homem.

Dito isso, verdade, a priori, inconteste, temos que deus é uma invenção humana. Criamos a ideia de um ser imaginário que tudo vê e comanda através de uma característica evolutiva própria dos seres humanos: a capacidade de pensar, notadamente, a de fantasiar, de criar realidades paralelas.

Deus, por assim dizer, é uma patologia mental que se aceita sem estar doente. Mais que isso: a ideia de deus é um alento ao sofrimento humano.

Não existissem desigualdades, duas das grandes potências invisíveis que comandam nossa sociedade desapareceria: o Estado, como força coercitiva própria (polícia, judiciário, etc) e a Religião, como força coercitiva imprópria, posto que age sobre a mente humana.

Estando tudo em paz, não há que se procurar o Estado, através do Judiciário. A vida segue sem problemas. As relações interpessoais permanecem pacificadas.

Havendo paz interior, reflexo da igualdade exterior, não haveria sentido em se clamar pelo amor divino em instituições bancárias travestidas de templos de salvação.

A desigualdade criou o paraíso, fruto da mente sofredora de quem não vê perspectiva de melhoras nesta vida. E é ela quem alimenta os bancos do Estado e os cofres do Clero.

Fosse o mundo igualitário, usaríamos nossa capacidade imaginativa para possibilidades maiores. Ou não.

27 de dezembro de 2012
(postado originalmente no Fraus Legis - eu acho)

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Sobre caciques, ovelhas, nós e eles



Temer é golpista!
Lula é ladrão!
Aécio safado!
Moro herói!
Bolsonaro mito!

Eis os gritos de guerra das torcidas organizadas pelo país.

O Brasil hoje é um país que não sabe conviver com opiniões divergentes. Penso até que nunca soube. Mas os tempos de hoje nos permitem colocar os nossos demônios expostos ao sol.

Todo mundo quer provar (impor) seu ponto de vista, ao invés de abrir espaço para o diálogo. E, note, o ponto de vista que se quer impor raramente é o próprio ponto de vista, mas, sim, o de alguém que se idolatra e se adota como “salvador da pátria”. É assim, como sempre foi em nossa história.

Dizem que o brasileiro é um povo pacífico. Equívoco! Não guerreamos por aí por falta de oportunidade (e material). Mas, internamente, matamo-nos, sufocamo-nos e vamos vivendo, fingindo que tudo é lindo, que somos abençoados por deus, etc etc etc. E aí vem o carnaval. O brasileiro é um povo passivo. Sim, passivo. Ficamos esperando a mágica cair do céu. Esperamos o salvador da pátria. Votamos e deixamos o problema os eleitos, sem nos darmos conta que o problema é de todos nós.

Dessa forma, fomos criando caciques, políticos profissionais que de quatro em quatro anos se nos mostram como salvadores da pátria e vão se perpetuando no poder, enchendo seus bolsos, enquanto daqui de baixo, assistimos silenciosamente o caos se instaurando. De vez em quando lembramos de reclamar, botamos fogo nuns pneus aqui, fazemos uma passeata com camisa de Confederação corrupta ali, colocamos a culpa no outro, no que votou no partido X, e não no nosso partido Y. E vamos nos digladiando para o deleite daqueles que, do alto, aguardam o quadriênio para reaparecer com as mágicas salvadoras.

Dessa forma, vamos vendo o patrimônio público ser dilapidado, pouco a pouco, às vezes nem tão pouco a pouco assim. Achamos que só roubam os políticos que desviam verba pública e não nos damos conta que o ônibus depredado, as carteiras da escola quebradas e pichadas, os fios de cobre da iluminação pública furtados, tudo isso é também um roubo contra o patrimônio público, justamente por ser, tudo isso, PÚBLICO!

Com a nossa passividade, deixamos à míngua a noção do que é público, e quem bem sabe distinguir o público do privado, aqueles mesmos caciques que deixamos como salvadores da pátria, aos poucos vão fazendo do primeiro o segundo e se apoderando de tudo.

E então vêm à tona os grandes escândalos de corrupção. Milhões, bilhões desviados de forma fraudulenta a encher os bolsos, cuecas, mochilas, cofres e contas no exterior daqueles que deveriam estar legislando e trabalhando em prol da sociedade. Mas, como a sociedade não está nem aí, vão ajeitando as coisas para si e para os seus próximos.

Muitas vezes esses próximos são os primeiros a sair em defesa dos “atacados pela mídia” e esbravejam contra todos os que falam mal dos seus queridos caciques. Vai se criando a lógica do “nós x eles”, onde nós, somente nós, somos os detentores das verdades universais e eles são meros ignorantes, que deveriam ser calados. E ainda continuamos, “nós”, a sermos os defensores da democracia, dos direitos humanos, etc etc etc, tudo, é claro, de forma relativizada. Direitos pra todos, mas, não igualmente.

No atual cenário é nítida essa lógica do “nós x eles”, consistindo em vagas alegações que tentam demonstrar que “nós” somos menos bandidos que “eles”, sem que ninguém, de forma alguma, assuma seus erros. Sem que se possa, de alguma forma, vislumbrar a abertura da uma janela para o diálogo.

E vamos tocando em frente, até que todos possam ter armas em punho e o direito de atirar em quem nos contraria.

O futuro é logo ali.

18 de abril de 2017.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Animais de estimação



Antes de começar, eu quero já, de antemão, pedir de desculpas. Desculpe-me pelo que direi a seguir, pelos próximos minutos. Vocês, digo, muito de você não vão gostar, mas, é a mais pura verdade. É a verdade, desde que vocês enxerguem sem olhos enviesados. Animais de estimação são um bando de mimos para adultos carentes. Desculpe, é a verdade.

Não contente em estar no topo da cadeia alimentar, o ser humano passou a, sistematicamente, subjugar as demais espécies, “colocando-as em seus devidos lugares”. Comemos pinto de boi, de cavalo, alguns comem cabras, biblicamente falando, dentre outras bizarrices.

Mas, até aí tudo bem, o ser humano precisa se alimentar e descobriu nos animais uma baita fonte de proteína, e aquela gordurinha também, é claro.

Depois começamos a notar que alguns animais poderiam nos servir para aumentar nossa proteção num mundo selvagem. Começamos a cruzar lobos selvagens dóceis com lobos selvagens dóceis, até criarmos os cães, que fomos cruzando com outros cães que criamos, criando diversas raças, com características distintas. Foi uma puta maldade, mas, até aí tudo bem. Precisávamos de uma proteção extra e um lobinho que nos curte é uma baita proteção.

Aí evoluímos a sociedade, construímos muros, casas, telhados, e aqueles lobos amigos domesticados já não precisavam ser ferozes, necessariamente. Então continuamos a cruza-los, e cruza-los, até criarmos uma série de raças de diferentes aparências físicas, mas, com o mesmo aspecto comportamental: umas topeiras que abanam os rabos quando veem seus donos.

Ou seja, criamos animais para acariciar o frágil ego de seres humanos carentes de atenção e afeto. Só não contamos para eles, e eles não querem saber, que a aparente felicidade, o abano de rabo, significa para o cão: “eba, chegou o cara que me dá comida”. Experimente não dar comida para o seu cãozinho e veja se ele vai ser legal contigo só porque é o dono dele e o considera pacas.

E isso não é só com cães, é com toda uma gama de animais que domesticamos única e exclusivamente para alimentar nosso ego, para ter alguém em casa para nos receber quando chegamos cansados de nossos trabalhos de miséria, onde nos humilham e nos domesticam, por um salário de miséria, em troca de toda a liberdade que poderíamos ter se não vivêssemos numa sociedade que necessita de mão de obra semi-escrava para bancar meia dúzia de bilionários que comandam a porra toda (mas, os robôs estão chegando com tudo, e não vai sobrar nem salário de miséria, ou seja, seu cãozinho vai ficar sem a comidinha de marca, os remédios, e o hotel para cães).

Enquanto isso, crianças e mais crianças são abandonadas à própria sorte, crescendo e vivendo em orfanatos, sem ter o mínimo, enquanto cães têm roupas brilhantes, festas de aniversário e até de casamento (ai meus ovos). E vivemos de repetir que o mundo está um caos. Por que será?

Animais de estimação não são seus amigos. Não são. Eles são reféns afetados pela Síndrome de Estocolmo. E viverão em harmonia com o dono, até faltar comida.

14 de abril de 2017

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Algum dia num passado próximo.



"Será?"


"The winter is coming!". Eu sinto. Nem tanto o inverno externo, climático. Sinto calor no momento. Mas o interno se faz sentir aproximar. É triste analisar o panorama e não conseguir chegar a nenhuma conclusão. Fica então só a tristeza. Nasci para ser refém? Vai ser sempre assim? Merda! Merda!

Onde está a esperança que cheguei a possuir? Cuido tão bem (ao menos acho) das minhas coisas, onde foi que deixei a coragem? Alguma vez realmente a possuí? E vem e vai aquela vontade que ninguém compreende. Dizem ser pecado. Desânimo. Desesperança. Desassossego. Vamos a um intervalo. Sobram páginas em atraso por ler.

A gente vai mudando para agradar as pessoas com as quais gostamos de estar. No fim, é-nos insuportável conviver com o que nos tornamos. Aí é que surge a vontade e o desejo. Muitas vezes é tarde demais para voltar às origens, perde-se-á, mesmo que nos digam que nunca é tarde demais.

Deveria estar trabalhando. Há muito por fazer, mas e o que eu ia dizer? Crise! Crise! Intelectual, política, financeira, moral, empática (existe?), crises! E eu não sinto o tempo passar. Os dias vão se misturando. Tudo é uma coisa só. Não tem mais segunda, não tem mais terça, nem quarta, nem quinta ou sexta, nem mesmo sábado ou domingo, é tudo aborrecimento e desventura. Cadê nosso lugar ao sol? Precisaremos esperar o segundo sol chegar? Volto ao trabalho... onde estará minha cabeça? Já é sexta e o dinheiro onde ficou? O fim de semana será triste. O fim de semana será um domingo a noite que chora a chegada da segunda. Mas já não existem domingos ou segundas, é tudo aborrecimento e fim.

O que há a se fazer? Os dias passam. Para onde vamos? A última grande ideia da TV foi o retorno da Banheira do Gugu. O que acontece? Percebo que o tempo passa, sem que eu consiga alcança-lo. Aquela vírgula não deveria existir. Não li Proust, nem Hemingway, pouco de Baudelaire, nada de Adelia Prado; as escolas não incentivam. Acho que o giz, o pó de giz, contamina mais que agrotóxico. Os professores estão contaminados. O cérebro engessado em giz inalado ano após ano. Logo será peça de museu que algum fundamentalista religioso fará em pedaços. Evolução nem sempre é melhoria. Eu não consigo evoluir. Não consigo me adaptar. O fim.

Cheguei a conclusão que não sou uma pessoa boa. Muita coisa não faço por temer as consequências da lei (mesmo já tendo feito muita coisa contra ela, coisa séria, inclusive). Uma pessoa boa, na acepção pura, não deveria deixar de fazer as coisas por medo das consequências. Ela simplesmente não teria vontade de fazer coisas que prejudicassem outrem. Por isso, nenhuma pessoa temente a qualquer deus, ou qualquer autoridade, pode ser considerada boa. Aliás, por não fazerem o que sentem vontade por temor, estão fazendo mal a elas próprias. E muitas, com os desejos repletos de maldades, por não praticarem o que pensam, pelo temor, se acham e se propagam como arautos da bondade.

Cansei.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Carlos

Ainda era 7 da matina. Eu estava na cama, ensaiando o banho que viria, encarando a calça, a camisa e o paletó pendurados na porta do guarda-roupa. Era a primeira vez que iria repetir aquilo em mais de 10 anos. Eu não podia falhar, falhar não era sequer uma opção de pensamento. Tudo tinha que ser perfeito. Era o meu momento, mais uma vez. Eu precisava daquilo. Todo o resto dependia daquela entrevista. Todo o resto dos meus dias estaria centrado naqueles minutos contados a partir das 10 horas, no 12o andar, do Edifício Tiradentes, na Avenida Alparcoles, 2349. Ainda era 7 horas, e eu começava a repassar tudo o que pretendia dizer, mentalmente, antes mesmo de sair da cama. Eu não podia falhar.

Mas aí o leitor incauto pode estar se perguntando: se ainda faltam 3 horas e você já está se preparando, o que poderia dar errado? E nisso eu preciso pedir desculpas, eu não me apresentei corretamente.

Meu nome é João Sousa Castro, tenho 36 anos, nasci no dia 20 de setembro de 1990, portanto, sou de virgem. Tive uma infância normal, filho de pai médico, mãe psicóloga, o que, pensando bem, torna o termo "normal" um pouco fora do contexto, digamos, normal. Mas, para os parâmetros que eu conhecia, a infância foi normal. Tenho 1.72m, 96kg, gosto de esportes, gastronomia, música clássica, dentre outros diversos gostos. Não tenho nenhum problema grave de saúde. Quer dizer, não tinha, até os 18 anos quando descobri ser portador de uma desordem rara que afetou diretamente as minhas relações interpessoais desde então: eu não tenho controle sobre ereções eventuais que venha a ter. E esse é meu drama.

Na faculdade, invariavelmente, nas situações mais improváveis, bum!, lá estava meu pênis ereto, pressionando o tecido da calça. Várias foram as intimações para comparecer junto ao Conselho Ético da universidade, a fim de esclarecer acusações de desrespeito e assédio formulado por quem não conhecia o meu drama (e eram poucos os que conheciam).

Durante o curso, Administração (que hoje eu vejo mais como um curso técnico com status de graduação superior, visto que Administração é dado até em escolas técnicas), fiz estágios em cinco empresas diferentes. Em quatro delas fui convidado a me retirar e uma acabou pedindo falência (dizem estar relacionado a um processo sobre danos morais, levado a cabo por um possível assédio por parte de empregado da empresa, que dizem ter sido um estagiário. Isso nunca foi comprovado).

Nunca expliquei o motivo de tão pouco tempo nas empresas pelas quais passei, na empresa seguinte. Eles acabavam descobrindo depois. Terminei a faculdade e vaguei de bicos em bicos, subempregos em subempregos. Vi-me na situação de ter de voltar à casa dos meus pais, por não ter condições de me manter sozinho, já que desempregado. E assim estou há 12 anos.
Hoje moro sozinho, na casa que era dos meus pais, falecidos 5 anos atrás. Vivo de trabalhos que faço para alunos preguiçosos e, para minha segurança, todo o contato é feito virtualmente. Passo o dia de cuecas em casa, o que garante certa liberdade de movimento ao imprudente membro.

Na maior parte das ocorrências, a ereção era totalmente aleatória, sem motivo aparente que lhe desse base. Era como se eu estivesse em constante estado de "paudurecência despertativa", nome técnico que inventei para a ereção matinal do homem. Outras vezes, raras vezes, chegava a sentir dor, tamanha a força eretiva (essa palavra passa a existir se não existisse), era quando alguma mulher me despertava o interesse. Um verdadeiro martírio, que me fez ter apenas dois relacionamentos amorosos na vida, um deles quando adolescente, o outro na fase adulta, que acabou por conta de uma ereção no momento errado, que foi incompreendida por ela. Aprendi a viver de masturbação e eventuais transas com desconhecidas taradas, que encontrava em aplicativos para smartphones.

Apresentado que estou, revelo agora o motivo de minha preocupação.

Há alguns meses venho espalhando currículos em diversas empresas visando retomar os trabalhos na minha área de formação. Vários foram os nãos em resposta. O que machucou bastante minha já fadada auto-estima, e quase me fez desistir de tudo. Quando parecia que esse momento finalmente chegaria, eis que recebo um e-mail de uma das empresas, informando que receberam meu currículo, que havia uma vaga e que minhas qualificações encaixavam perfeitamente naquilo que necessitavam, bastando então uma entrevista pessoal para "fortalecimento dos laços aparentes", conforme a mensagem.

Enquanto lia, fui ficando bastante empolgado, então vocês já devem saber o que aconteceu. Mas, ainda havia um denominador a mais nessa equação. Ao terminar de ler a mensagem, notei que o nome assinado abaixo do texto era-me conhecido. "Mirela Maria Moura de Assis, diretora de Recursos Humanos”. Meu coração disparou. Meu pênis empedreceu. Dor. Desespero.

Mirela tinha sido minha paixonite de faculdade. O motivo de eu ter reprovado em Noções Básicas de Direito, já que ela, que fazia Relações Públicas, compartilhava da mesma aula com a minha turma e eu não conseguia ficar no mesmo local que ela sem uma ereção monstruosa. Reprovei por falta, e eu, que sempre a evitara, agora teria que dividir uma sala com ela, com nossos corpos a centímetros de distância, isso sem falar em eventual toque ritualístico antes da entrevista, uma entrevista que definiria o resto da minha vida.

Eu estava em pânico! E por isso que eu estava, já às sete da manhã, repassando tudo o que pretendia dizer para garantir a vaga, sem deixar tempo de pensar em Mirela, evitando problemas maiores. Era por isso que eu vinha ensaiando as informações há 3 dias, desde que recebi o e-mail.

E então, o dia finalmente havia chegado. E, como já disse, eu estava em pânico.

Oito da manhã, levantei-me, ereto. Mijei, escovei os dentes, entrei no banho, tentei me masturbar buscando um alívio da questão. Não adiantou. Não gozei. Estava em pânico. Saí do banheiro, me enxuguei, ainda ereto. Sentei na cama. Respirei. Respirei. Um pouco de alívio. Pus-me a vestir as roupas, penteei o cabelo, calcei os sapatos, perfumei.

8:45h, tomei leite, sem café (qualquer estimulante seria extremamente perigoso). Pedi um táxi, aguardei. 9:10h, entrei no táxi, 9:30h estava na frente do prédio. Parei num café ali por perto, tomei um suco de laranja. Estava em pânico. 9:40h estava na recepção, a secretária me pediu para aguardar. Estava próximo do momento da verdade, sentia-me estranhamente controlado. Foi-me avisado que a "senhorita Mirela e o senhor Carlos já verão o senhor". Quem era Carlos? Não me avisaram de nenhum Carlos. Eu entrava em pânico do pânico. E se acontecesse? Mirela eu conhecia, poderia explicar, mas e esse Carlos? Eu estava em pânico.

Fui levado até a sala de reuniões, Mirela me cumprimentou, apresentou-se. Fiquei estranhamente controlado. Não era, afinal, a Mirela que eu conhecera. E essa, definitivamente, não fazia meu tipo. Sentamos. Senti-me confiante pela primeira vez. Não tinha Mirela, não tinha Carlos. Era eu e aquela Mirela desconhecida. Eu estava confiante, mesmo com a mesa transparente. Eu estava confiante. E confiança demais pode ser um risco. Mas, "foda-se", eu estava ali prestes a retomar os rumos da minha vida.

A entrevista corria como eu ensaiara mentalmente por dois dias, respostas precisas, certeiras, eu estava demais! No meio pro fim, entrou Carlos, impondo sua evidente posição superior, ainda falando com a secretária enquanto abria a porta da sala de reuniões "Eu ligo pra ele, pode deixar", disse antes de fechar a porta atrás de si e pedir desculpas pelo atraso.

Cumprimentou-me. Um certo exagero no perfume. Terno impecavelmente alinhado. Sentou-se e pediu para que Mirela prosseguisse. Avaliava cada uma de minhas respostas e fui me sentindo estranho. Eu estava  confiante, controlado por não ter a Mirela de outrora a minha frente, por não ter o Carlos a minha frente. Agora era uma outra Mirela ainda, mas a questão Carlos voltou à baila. Sentia-me perdendo a confiança. Uma certa nesga de recordação dos olhos, cabelos da outra Mirela, aquela. Sentia-me estranho. Respondi atropelado às últimas perguntas. Sorrisos, cumprimentos, eu me sentia estranho. Sentia a chegada de uma ereção daquelas. Droga! Droga! Não agora. Não agora. Fim da entrevista, agradecimentos, promessas de contato.

Despedi-me de Mirela, já levantando (falta de educação, eu sei), Carlos já se encontrava na porta quando me levantei, um aperto de mão forte, um tapinha nas costas "Gostamos do que vimos, João, eu te ligo". Perguntei do banheiro "primeira a direita", eu estava estranho.

Cheguei no banheiro com uma ereção congelando meu cérebro de dor. Tive que me masturbar ali mesmo. Gozei. Maldita hora para uma ereção, bendita sorte ser no final.

Saí do banheiro sem entender o motivo daquilo, eu estava tão no controle. Na saída do escritório, Carlos acenou despedindo-se. Excesso de confiança?, pensei, ainda tentando entender a mudança de comportamento repentina. Eu estava tão confiante.

Mas, foi por Carlos, talvez. Seria isso o que causam os tais machos alfas? Carlos me ligaria.

05 de abril de 2017

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Extraordinariamente

Era uma vez, num pedaço comum de um país comum, em uma comunidade comum, um bebê comum, que nasceu de forma comum, filho de pais comuns e recebeu um nome comum.
Cresceu como crescem as pessoas comuns, sem muita novidade, viveu uma infância comum, uma adolescência com altos e baixos, como um adolescente comum, foi trabalhar num trabalho comum, recebendo trabalho comum, vivendo sua vida comum até que...
Num happy hour comum, com seus amigos comum, conheceu uma pessoa fora do comum, excepcional. Essa pessoa, de maneira incomum, acabou se apaixonando pelo seu jeito de ser comum. E beijaram-se de forma maravilhosamente extraordinária, trocaram telefones e marcaram de se ver novamente. No fim da noite, cada um foi para seu lado. Ele para o seu carro comum, pegou o caminho comum. Dormiu em sua cama comum.
A pessoa extraordinária foi colocou seu capacete incomum, acelerou sua motocicleta excepcionalmente veloz, e partiu como um raio. No cruzamento de uma avenida, não notou o caminhão de lixo que cruzava sem ligar para o sinal vermelho. Chocou-se. O corpo arremessado de maneira assustadoramente incomum foi parar dezenas de metro distante do local do choque. No voo, viu toda a sua vida incrível passar diante de seus olhos peculiares, sendo apagado pelo choque com o solo. O motorista do caminhão fugiu. E a pessoa, outrora extraordinária, foi recolhida, horas depois, num carro comum do IML, sua morte registrada em uma certidão comum. Foi enterrada em terra marrom, comum, apesar da construção macabramente espetacular do jazigo.
Quando acordou, no dia seguinte, uma ressaca incomum tomou seu corpo comum, na sua casa comum. Sentia que havia se esquecido de algo, mas, não recordava de nada das últimas 12 horas. Algo de incomum estava naquelas bebidas. Olhou o relógio: 8 horas. Lembrou-se do domingo que se abria lá fora das cortinas, fechou-as, virou para o lado e fechou os olhos.
Dormir era o que mais de incomum fazia aos domingos, comparado ao dia seguinte que viria: uma mais segunda-feira comum.
Mas, sabia que estava se esquecendo de algo. Só não lembrava o quê. Adormeceu.

04 de abril de 2017

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Vozes

Ouço vozes que me chamam dia e noite
e não as obedeço.
Ignoro os gritos que me rompem de açoite
e não os reconheço.

Não sei quem sou em meio a eles.
Talvez os seja todos.
Talvez não seja eu ninguém,
apenas eles que são.

Vejo vultos que me tocam e fogem.
Escondem-se entre as sombras do que não posso ver.
Os sinto aqui e ali.
Percebo-os nos cantos dos armários,
nos fundos das casas,
nos pensamentos.

Escrevo em versos e prosa
o que as vozes me sopram por entre os ventos,
sem que as ouça.
Ignoro o que ouço.
Escrevo.
Desobedeço o que pedem.
Escrevo.
Não reconheço seus rostos.
Escrevo.

Talvez um dia eu descubra
que tudo o que fui como poeta,
em verdade,
foram eles,
elas,
não sei.

Essas vozes que me gritam mudas
e viram letras mortas
na minha mão quase paralisada.

29 de março de 2017