segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Febre

Eu, cujo calor mora em mim,
diz a minha namorada,
ontem achei que fosse morrer.
A temperatura do quarto era a mesma de outros dias,
o suor escorrendo pelas paredes,
Hellbeirão em sua forma padrão.
Por dentro, nos ossos, um frio,
como se as olimpíadas de Inverno,
que acompanhava pouco antes de deitar,
fizesse em mim a sua sede.
Frio.
Calafrio.
Eu, cujo calor mora em mim,
vi-me saindo da cama e pegando o cobertor esquecido no armário.
Frio, muito frio.
Tremia enquanto me enrolava no casulo dupla face,
lençol por baixo, cobertor por cima.
Deitei-me.
Delirando em sonhos acordados, adormeci.
Pesadelos,
delírios.
Despertei suando,
o frio ainda em mim.
Sentia o calor pulsando debaixo do cobertor,
enrolei-me ainda mais,
virei de lado,
suado,
friorento,
adormeci em delírio.
Achei que fosse morrer
e não morri.

Hoje estou suando em bicas de um calor que nem existe lá fora.
Pensando que fosse morrer eu renasci
e brindo a vida que ainda me resta
até a cerveja acabar.

18 de fevereiro de 2018

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Não dá pra ser feliz o tempo todo

E me contaram que não se pode ser feliz o tempo inteiro. E eu, tolo, acreditei. Assim é que levo a minha vida desde que me reconheço possuidor do sopro vital. Ainda que a vida seja minha (dizem), não a sinto como propriedade de minhas verdades. É-me antes externa a ideia de vida. Vivo para outrem. Vivi para outros que não eu. E desde então, sabendo-me a mim como possuidor, nunca fui de saber de mim em exato.
Quando a vida ri, eu fecho o semblante. Não fui dado a acreditar na bondade alheia. Ou talvez eu tenha me fechado nisso sem notar ser minha a resolução de não ser feliz. Ou talvez ainda não me tenha sido dado a oportunidade de ser feliz genuinamente. Afinal, o que é ser feliz?
E me contaram que não se pode ser feliz o tempo todo. Só esqueceram de explicar como é que isso é possível com tanta pessoa feliz por aí no mundo.
Nem tudo pode ser só aparência. Pode?


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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Cidades

Acordei como o tempo na cidade.
Nublado, chuvoso,
um vento frio cortante vindo do sul
de minhas saudades ausentes.

Uma vontade incipiente
de romper com tudo,
soltar as amarras
e deixar que o barco vá,
sem rumo
até o cataclisma inevitável.

Acordei como tempo da cidade me servindo de humor,
e a previsão diz que esse tempo
pode continuar na mesma
até o fim de semana.

Preciso de outra cidade para acordar.

08 de julho de 2015


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quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Por que nascer

Por que nascer?
Por que trazer outros seres moribundos
para um mundo que não mais pode existir?
Qual grande alegria tu podes lembrar
desde que a luz tu vistes a primeira vez?
Quantas?
E quantos momentos a lamentar?
Se você não for um herdeiro de helicoptero para ir à escola,
de ama de leite, de ama de toda as coisas que precisas,
de outra coisa qualquer que possa substituir teus pais
(e eles são substituíveis)
a tua vida é uma merda.
Toda vida, no fundo, é uma merda,
temperada por alguns momentos de alecrim,
azeite, sal, samba, pimenta e putaria.
O resto é tudo uma merda,
um eterno caminhar passo a passo para o fim.
E vamos, passo a passo, rindo da nossa tragédia,
bebendo a nossa falta de sorte,
sabendo que caminhamos pra morte.
E vamos todos morrer.
E vamos todos sofrer.
E sorrindo jogamos nossos filhos nessa ciranda de sofrimento,
e sofrendo vamos dando à luz outros humanos do nascimento,
e todo mundo se fode,
e todo mundo vai se foder.
O melhor é frear a dor no início,
o melhor é nem deixar nascer.

13 de fevereiro de 2018

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Perdoe-me a ausência

Meu eu lírico não sobrevive ao menor sinal de estabilidade emocional.

Ele simplesmente não consegue mandar a mim os mais simples versos quando, sentindo, eu esteja em estágio de felicidade.

Ele precisa sofrer. Sentir o sofrimento. Estar dentro de um universo de todo esquecimento e dor. E não esteve.

Nas últimas semanas fui agraciado pela presença sublime da mulher que amo muito mais tempo que tempo tenho me acostumado.

E tanto tempo em felicidade plena me afastou do eu lírico que sofre e me força a escrever.

Quando com ela estou, a necessidade de escrever se transmorfa em necessidade de satisfazê-la, em todos os sentidos. E sou dela o tempo todo que posso ser enquanto ela está comigo. E esqueço de todo o resto. O mundo já não me faz necessário, pois o mundo em que vivo é ao redor do seu perfume, do seu cheiro do seu gosto na minha boca.

E por estar assim mais do que o normal que estive nos últimos dias, perdi-me. Deixei de me conectar ao eu lírico e ele adormeceu, embriagado no perfume e no sabor da pele da minha Anne.

Volto em breve, amanhã talvez, mas sem vontade de voltar.

O desejo que me envolve é o de estar com ela e sempre estar.

E fodam-se os versos.

Foda-se o eu lírico.

O que quero é ama-la em prosa, verso e versículo,

e fazê-la gozar no quarto, na copa, num cubículo.

Sempre!

13 de fevereiro de 2018

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Minoria

Eu sou pardo, ele é preto, ela é preta,
aquele ali é mulato, a outra ali é mulata,
o outro se declara moreno,
já aquele diz que é cinza, meio termo,
ela prefere se dizer afrodescendente,
ele afirma que é preto, negro, azulão.
Lá no fundo, tímido, ele se intimida ao dizer-se branco.
O outro ali é branco também, terno alinhado,
o que chega de carro esportivo importado é branco,
o dono do banco, os donos de tudo, brancos.
No Brasil a minoria é de brancos
que formam a maioria no topo.
Eles que mandam.

03 de fevereiro de 2018

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Dose dupla

- Como você gosta a sua bebida? - ela perfuntou, solícita, com a garrafa já há um bom tempo maior de idade na mão.
- Geralmente sozinho, em casa, ouvindo jazz, respondi taciturno.
Ela serviu dose dupla, sem gelo e botou na vitrola aquele disco do Miles Davis que tanto gosto.
Sabia que dessa vez eu abriria mão da solidão, sentou-se a meu lado, brindou e me tirou um sorriso.
Ela me conhece tão bem.


27 de janeiro de 2018