segunda-feira, 10 de abril de 2017

Carlos

Ainda era 7 da matina. Eu estava na cama, ensaiando o banho que viria, encarando a calça, a camisa e o paletó pendurados na porta do guarda-roupa. Era a primeira vez que iria repetir aquilo em mais de 10 anos. Eu não podia falhar, falhar não era sequer uma opção de pensamento. Tudo tinha que ser perfeito. Era o meu momento, mais uma vez. Eu precisava daquilo. Todo o resto dependia daquela entrevista. Todo o resto dos meus dias estaria centrado naqueles minutos contados a partir das 10 horas, no 12o andar, do Edifício Tiradentes, na Avenida Alparcoles, 2349. Ainda era 7 horas, e eu começava a repassar tudo o que pretendia dizer, mentalmente, antes mesmo de sair da cama. Eu não podia falhar.

Mas aí o leitor incauto pode estar se perguntando: se ainda faltam 3 horas e você já está se preparando, o que poderia dar errado? E nisso eu preciso pedir desculpas, eu não me apresentei corretamente.

Meu nome é João Sousa Castro, tenho 36 anos, nasci no dia 20 de setembro de 1990, portanto, sou de virgem. Tive uma infância normal, filho de pai médico, mãe psicóloga, o que, pensando bem, torna o termo "normal" um pouco fora do contexto, digamos, normal. Mas, para os parâmetros que eu conhecia, a infância foi normal. Tenho 1.72m, 96kg, gosto de esportes, gastronomia, música clássica, dentre outros diversos gostos. Não tenho nenhum problema grave de saúde. Quer dizer, não tinha, até os 18 anos quando descobri ser portador de uma desordem rara que afetou diretamente as minhas relações interpessoais desde então: eu não tenho controle sobre ereções eventuais que venha a ter. E esse é meu drama.

Na faculdade, invariavelmente, nas situações mais improváveis, bum!, lá estava meu pênis ereto, pressionando o tecido da calça. Várias foram as intimações para comparecer junto ao Conselho Ético da universidade, a fim de esclarecer acusações de desrespeito e assédio formulado por quem não conhecia o meu drama (e eram poucos os que conheciam).

Durante o curso, Administração (que hoje eu vejo mais como um curso técnico com status de graduação superior, visto que Administração é dado até em escolas técnicas), fiz estágios em cinco empresas diferentes. Em quatro delas fui convidado a me retirar e uma acabou pedindo falência (dizem estar relacionado a um processo sobre danos morais, levado a cabo por um possível assédio por parte de empregado da empresa, que dizem ter sido um estagiário. Isso nunca foi comprovado).

Nunca expliquei o motivo de tão pouco tempo nas empresas pelas quais passei, na empresa seguinte. Eles acabavam descobrindo depois. Terminei a faculdade e vaguei de bicos em bicos, subempregos em subempregos. Vi-me na situação de ter de voltar à casa dos meus pais, por não ter condições de me manter sozinho, já que desempregado. E assim estou há 12 anos.
Hoje moro sozinho, na casa que era dos meus pais, falecidos 5 anos atrás. Vivo de trabalhos que faço para alunos preguiçosos e, para minha segurança, todo o contato é feito virtualmente. Passo o dia de cuecas em casa, o que garante certa liberdade de movimento ao imprudente membro.

Na maior parte das ocorrências, a ereção era totalmente aleatória, sem motivo aparente que lhe desse base. Era como se eu estivesse em constante estado de "paudurecência despertativa", nome técnico que inventei para a ereção matinal do homem. Outras vezes, raras vezes, chegava a sentir dor, tamanha a força eretiva (essa palavra passa a existir se não existisse), era quando alguma mulher me despertava o interesse. Um verdadeiro martírio, que me fez ter apenas dois relacionamentos amorosos na vida, um deles quando adolescente, o outro na fase adulta, que acabou por conta de uma ereção no momento errado, que foi incompreendida por ela. Aprendi a viver de masturbação e eventuais transas com desconhecidas taradas, que encontrava em aplicativos para smartphones.

Apresentado que estou, revelo agora o motivo de minha preocupação.

Há alguns meses venho espalhando currículos em diversas empresas visando retomar os trabalhos na minha área de formação. Vários foram os nãos em resposta. O que machucou bastante minha já fadada auto-estima, e quase me fez desistir de tudo. Quando parecia que esse momento finalmente chegaria, eis que recebo um e-mail de uma das empresas, informando que receberam meu currículo, que havia uma vaga e que minhas qualificações encaixavam perfeitamente naquilo que necessitavam, bastando então uma entrevista pessoal para "fortalecimento dos laços aparentes", conforme a mensagem.

Enquanto lia, fui ficando bastante empolgado, então vocês já devem saber o que aconteceu. Mas, ainda havia um denominador a mais nessa equação. Ao terminar de ler a mensagem, notei que o nome assinado abaixo do texto era-me conhecido. "Mirela Maria Moura de Assis, diretora de Recursos Humanos”. Meu coração disparou. Meu pênis empedreceu. Dor. Desespero.

Mirela tinha sido minha paixonite de faculdade. O motivo de eu ter reprovado em Noções Básicas de Direito, já que ela, que fazia Relações Públicas, compartilhava da mesma aula com a minha turma e eu não conseguia ficar no mesmo local que ela sem uma ereção monstruosa. Reprovei por falta, e eu, que sempre a evitara, agora teria que dividir uma sala com ela, com nossos corpos a centímetros de distância, isso sem falar em eventual toque ritualístico antes da entrevista, uma entrevista que definiria o resto da minha vida.

Eu estava em pânico! E por isso que eu estava, já às sete da manhã, repassando tudo o que pretendia dizer para garantir a vaga, sem deixar tempo de pensar em Mirela, evitando problemas maiores. Era por isso que eu vinha ensaiando as informações há 3 dias, desde que recebi o e-mail.

E então, o dia finalmente havia chegado. E, como já disse, eu estava em pânico.

Oito da manhã, levantei-me, ereto. Mijei, escovei os dentes, entrei no banho, tentei me masturbar buscando um alívio da questão. Não adiantou. Não gozei. Estava em pânico. Saí do banheiro, me enxuguei, ainda ereto. Sentei na cama. Respirei. Respirei. Um pouco de alívio. Pus-me a vestir as roupas, penteei o cabelo, calcei os sapatos, perfumei.

8:45h, tomei leite, sem café (qualquer estimulante seria extremamente perigoso). Pedi um táxi, aguardei. 9:10h, entrei no táxi, 9:30h estava na frente do prédio. Parei num café ali por perto, tomei um suco de laranja. Estava em pânico. 9:40h estava na recepção, a secretária me pediu para aguardar. Estava próximo do momento da verdade, sentia-me estranhamente controlado. Foi-me avisado que a "senhorita Mirela e o senhor Carlos já verão o senhor". Quem era Carlos? Não me avisaram de nenhum Carlos. Eu entrava em pânico do pânico. E se acontecesse? Mirela eu conhecia, poderia explicar, mas e esse Carlos? Eu estava em pânico.

Fui levado até a sala de reuniões, Mirela me cumprimentou, apresentou-se. Fiquei estranhamente controlado. Não era, afinal, a Mirela que eu conhecera. E essa, definitivamente, não fazia meu tipo. Sentamos. Senti-me confiante pela primeira vez. Não tinha Mirela, não tinha Carlos. Era eu e aquela Mirela desconhecida. Eu estava confiante, mesmo com a mesa transparente. Eu estava confiante. E confiança demais pode ser um risco. Mas, "foda-se", eu estava ali prestes a retomar os rumos da minha vida.

A entrevista corria como eu ensaiara mentalmente por dois dias, respostas precisas, certeiras, eu estava demais! No meio pro fim, entrou Carlos, impondo sua evidente posição superior, ainda falando com a secretária enquanto abria a porta da sala de reuniões "Eu ligo pra ele, pode deixar", disse antes de fechar a porta atrás de si e pedir desculpas pelo atraso.

Cumprimentou-me. Um certo exagero no perfume. Terno impecavelmente alinhado. Sentou-se e pediu para que Mirela prosseguisse. Avaliava cada uma de minhas respostas e fui me sentindo estranho. Eu estava  confiante, controlado por não ter a Mirela de outrora a minha frente, por não ter o Carlos a minha frente. Agora era uma outra Mirela ainda, mas a questão Carlos voltou à baila. Sentia-me perdendo a confiança. Uma certa nesga de recordação dos olhos, cabelos da outra Mirela, aquela. Sentia-me estranho. Respondi atropelado às últimas perguntas. Sorrisos, cumprimentos, eu me sentia estranho. Sentia a chegada de uma ereção daquelas. Droga! Droga! Não agora. Não agora. Fim da entrevista, agradecimentos, promessas de contato.

Despedi-me de Mirela, já levantando (falta de educação, eu sei), Carlos já se encontrava na porta quando me levantei, um aperto de mão forte, um tapinha nas costas "Gostamos do que vimos, João, eu te ligo". Perguntei do banheiro "primeira a direita", eu estava estranho.

Cheguei no banheiro com uma ereção congelando meu cérebro de dor. Tive que me masturbar ali mesmo. Gozei. Maldita hora para uma ereção, bendita sorte ser no final.

Saí do banheiro sem entender o motivo daquilo, eu estava tão no controle. Na saída do escritório, Carlos acenou despedindo-se. Excesso de confiança?, pensei, ainda tentando entender a mudança de comportamento repentina. Eu estava tão confiante.

Mas, foi por Carlos, talvez. Seria isso o que causam os tais machos alfas? Carlos me ligaria.

05 de abril de 2017

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