quinta-feira, 12 de julho de 2018

Clóvis

Ela passava por um momento difícil. Acabara de perder o pai, a família mudara-se tentando evitar as inevitáveis lembranças e eu era um contraponto na tristeza geral que assolava os, também, meus (sim, pois quando se está num relacionamento, a família do outro torna-se sua família e, aceitar esse fato, melhora, substancialmente, a aceitação de todos os eventuais – na sua opinião – defeitos que de lá vem). Apesar de certa relutância (eu não lido muito bem com a situação toda), senti que já passava da hora de dar alguma contribuição para aqueles que, logo, seriam, oficialmente, minha família.

Depois de ajudar com a mudança, e auxiliar no que podia com meus dotes de marido de aluguel (que são quase nulos, mas, poeta que sou, finjo bem saber do que nada sei), passei o dia da mudança, exausto, na nova residência.

Em dado momento, necessitando da bolsa dela que ficara no carro, na garagem, ofereci-me para descer, posto que todos já estavam em seus pijamas. Peguei a chave, calcei meus chinelos, atravessei o corredor até sua metade, onde ficam os elevadores, chamei.

Espera. Espera. Espera. Entra. Aperta SS (que não é um botão que te leva ao escritório da polícia nazista). Subsolo. Desce. Desce. Desce. Chega. Abre a porta, saio. Caminho os 30, 40, 50 metros até o carro. Aperto o botão do alarme. Nada! Aperto novamente. Nada. Outra. Nada. Luzes no subsolo. Alguém está vindo. Aperto. Aperto. Aperto. Luzes mais fortes. Aperto. Clic clic. Destravou. Abro a porta. Pego a bolsa. Fecho a porta.

Aperto o botão da trava do alarme. Clic. Ufa! Fecha. Luzes mais e mais próximas. Carro preto. Casal dentro. Param. Do lado da vaga. Vizinhos? Vizinhos! Passo pelo carro, aceno com a cabeça para o motorista. Homem. Sigo ao elevador. Chamo.

Espero. Espero. Chega. Ouço alarme do carro preto. Passos de salto alto. É a mulher. O elevador chega. Abre. Seguro. A mulher entra no meu campo de visão. “Quer aproveitar?”. Ela aceita. Ele vem em seguida. O homem e sua camiseta. Entram, eu entro. Mesmo andar. Elevador fecha.

- Vocês mudaram recentemente? - pergunta ele. Sisudo. No canto do elevador. Reticente.

- Sim. Eu sou namorado de uma das moradoras, estava ajudando. - respondo solícito.

- Sejam bem vindos. - o casal bem recebe em uníssono.

- Gostei da sua camiseta. - diz o homem, apontando para minha camiseta da cerveja verdade puro malte patrocinadora de grandes eventos esportivos.

- E eu gostei da sua. Digo apontando com o queixo a sua camiseta de uma das maiores bandas de rock do mundo. E acho que a sua é melhor, tento ser gentil.

- Não, a sua é. Ele devolve a gentileza.

- É, talvez as duas juntas então.

- Nossa! - ele se empolga, citando um álbum ao vivo da tal banda como acompanhamento para latas da cerveja da camiseta.

- E você já tomou muitas hoje, né, Amor? - tenta desempolgar a centrada mulher.

O elevador para. Ele se empolga, vem na direção de onde vou, após ter dado boa noite.

- Vamos lá dar as boas vindas.

- Não, Amor, já tá tarde.

A cara da frustração. Rio empático ao seu sentimento. Um vínculo estava criado. A cerveja e a banda. Estampadas em camisetas que talvez não tivessem a intenção de criar tamanha empatia e cumplicidade instantâneas.

Entro no apartamento sorrindo da situação. De dentro ouviram as conversas e risadas do corredor, questionam-me. Conto o que acabo de contar e riem todos. Eu havia, em tese, feito o primeiro contato com novos vizinhos. A primeira ‘amizade’.

Mal sabiam eles, como eu mal sabia, o que ainda estava por vir.
Clóvis seria um personagem muito mais constante nas histórias que vivi naquele condomínio. A banda, a cerveja, ainda seriam protagonistas maiores que apenas marcas estampadas em nossas camisetas.


12 de julho de 2018

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