segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Sete Anjos do Apocalipse

Era meio dia, um sol de rachar concreto de areia do Sergio Naia, e ele estava lá, com seu terno preto, sua corneta, a Bíblia surrada embaixo do braço suado, suor por todo o rosto, em senhor de cabelos grisalhos, negro parrudo, voz imponente, conclamava, aos berros, o arrependimento dos infieis que se afastaram da lei divina. Todo dia ele fazia a mesma coisa, por horas e horas. Ninguém parecia ligar. Ele não ligava para quem não ligava. Continuava a gritar, tocar sua corneta e balançar o livro ensebado no ar.

- ARREPENDEI-VOS, DESCRENTES! O FIM ESTÁ PRÓXIMO! ARREPENDEI-VOS E PROCUREIS O SENHOR JESUS CRISTO, NOSSO SALVADOR!

FÓÓÓÓÓÓÓÓ, aquela corneta maldita, que me jogou ao chão, certa vez, tamanho o susto. Ele não escolhia hora, não importava se tinha gente perto, tocava com força, como um Armstrong, olhos esbugalhados, bochechas quase estourando. FÓÓÓÓÓÓÓÓÓ.

- O FIM ESTÁ PRÓXIMO!!! ELE ESTÁ VOLTANDO! OS ANJOS DO APOCALIPSE LOGO ESTARÃO ENTRE NÓS E SÓ OS ARREPENDIDOS SE SALVARÃO!

E era isso, todo dia, na hora do almoço. Eu sei que poderia escolher outro restaurante, mas aquele era o mais perto do trabalho, e o mais em conta. Ele que poderia escolher outro lugar para o seu culto ao fim dos tempos. Esperava que isso ocorresse. Nunca ocorria. Todo dia, lá estava ele, o seu terno, o seu livro e a sua maldita corneta.

Certa vez, eu estava passando por ali, era meio de tarde, um dia fresco, se bem me lembro, e uma jovem, devia ter seus 16 anos, passou junto a mãe por ele, que não perdeu a oportunidade.

- ESSAS JOVENS, VESTIDAS COMO PROSTITUTAS, ARREPENDEI-VOS! AINDA HÁ TEMPO! O FIM ESTÁ PRÓXIMO!

Aparentemente, a mãe da garota percebeu a indireta, voltou, parou na frente dele, com olhar de fúria, mesmo distante eu sentia o ódio, encarou-o por alguns longos segundos e mandou um tapa na cara.

- Prostituta é a senhora sua mãe, seu filho da puta. Tome conta da tua vida e deixe os outros escolherem o caminho a seguir. - E foi-se, puxando a filha.

Ele ficou uns segundos absorvendo o impacto. Arrumou-se, sem graça. Ajeitou a Bíblia. Segurou a corneta com força. Respirou fundo, uma, duas, três vezes. Encheu os pulmões de ar. FÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓ.

- ESSA GERAÇÃO ESTÁ CONDENADA!!! MÃES QUE DEFENDEM A DIFAMAÇÃO DAS FILHAS. ARREPENDEI-VOS. O FIM ESTÁ PRÓXIMO. OS ANJOS DO APOCALIPSE CHEGARÃO E LEVARÃO TODOS OS INFIÉIS PARA O INFERNO.

Em semanas, aquilo havia sido a melhor coisa que me acontecera. A mãe defendendo a honra da filha. A armadura impenetrável do homem crente em uma profecia que estava longe de ser concretizada. O tapa. O momento constrangedor. Aquilo tudo dizia muito sobre a nossa sociedade. Mais do que qualquer um notara. E os dias seguiam. FÓÓÓÓÓÓÓÓ.

Certo dia, fui almoçar, um silêncio. Pessoas transitavam, para lá e para cá, se trombando, conversavam entre si, mas, um silêncio. Olhei em volta. Silêncio. Entrei no restaurante, fiz meu prato, desta feita, sentei-me no balcão, olhando para a rua, um silêncio. Ele não estava lá. Um silêncio profundo. Nada de corneta. Nada de fim.

Longe, muito longe dali, os céus de Jerusalém se enegreciam em pleno fim de tarde, a uma velocidade assustadora. Raios partiam os céus ao meio, num clarão de assustar. Três raios desceram feito míssil, cada um atingindo o templo de cada uma das três maiores religiões do mundo, cujo berço se fazia ali. Aparentemente, o fim do mundo deveria começar de onde foram escritos as profeciais sobre ele.

O céu abriu-se em escarlate. Desceram, então, os sete anjos do apocalipse, e por não estarem acostumados a gravidade terrestre, viram a aceleração da descida aumentar drasticamente a velocidade de chegada e se espatifaram no chão.

Os céus se fecharam. A tarde voltou ao normal. E enquanto eu pagava a conta do almoço, ouvi lá da rua.

FÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓ.

Não houve o fim dos tempos com aqueles anjos. O fim estava próximo, ou talvez, nos próximos.

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