segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Aos 33

Os olhos começaram a falhar já na adolescência.
Eram olhos de águia, lembro-me bem.
Vizualizavam o ônibus que vinha a duas,
três, quatro quadras antes do ponto.
E então foram piorando.
Hoje ressacam.
O olhar torna-se turvo.
O cansaço é recorrente.

Por ser criado para ser o exemplo,
fui o exemplo do que pude ser.
Sempre estudei, li e busquei saber mais do que me cobravam.
Da escola pública, fui para uma faculdade pública.
A depressão começou naqueles dias.
Depois veio o que me tirou do sonho.

Vinte e dois, auge,
festa, cervejada,
uma brincadeira errada,
um chute que saiu pela culatra,
o joelho esquerdo.
Meses de incógnita,
médicos e médicos consultados,
e o joelho saindo do lugar
uma e outra e mais vezes.
O joelho direito se desgastou
por poupar o esquerdo.
Então os dois começaram a doer
mais do que eu pudesse aguentar.

O sonho da faculdade pública se foi.
Ficou a luta para o término do curso,
sem custos.
Prova, nota,
bolsa integral.
Erro de professor,
a raiva, a perda.
Quase desistência,
insistência,
outra bolsa integral.
Tudo pelo sonho compartilhado com quem,
perto de ver o sonho concretizado, morreu.

Vinte e muitos,
rinite,
dermatite,
depressão.
Os joelhos doíam mais do que pensava.
As costas passaram a sentir o peso dos sonhos não realizados.
A imagem do pai, ídolo, patrão, melhor amigo,
morto na cadeira de trabalho,
faziam-se mais presentes do que se queria.
O sonho compartilhado se foi,
pela confiança cega em quem não se devia confiar.

E a falta de vontade era toda a falta de vontade.
Na ânsia de não perder os dias com a mãe,
deixei-me ficar em casa mais do que deveria.
O conflito entre avó e mãe.
Mãe e filha.
Uma cuidando do filho da outra,
que dizia cuidar do resto,
e não cuidava de fato de quase nada.
A depressão pesando mais e mais.

A não vontade de continuar passou a ser amiga de copo.
Todo gole a mais era uma sessão a mais de choro
e declaração pública do vazio sentido,
da depressão presente.

Logo vieram as demais dores.
As costas se agravaram.
Chegaram as do pescoço.
Pernas. Pés.
Mãos paralisadas.
Braços dormentes.
E ela, sempre ali, à espreita.
O choro recorrente das noites de álcool.
Ele, o quase único amigo.

E aí vieram os filhos que não pedi e que nunca os tive.
Virei o substituto daquilo que não puderam ter.
Fui me assumindo assim, por não saber ser de outra maneira.
Mas logo tudo pesa, com ela ali sempre de mãos dadas.
Tanta coisa na cabeça,
tanta besteira que nem posso dizer.

Às vezes quero fugir com eles.
Tirá-los do ambiente tóxico criado ao redor.
Dar a eles um lugar onde eles sejam as estrelas,
e não outras pessoas de um lado de lá de uma conexão,
uma tela brilhante que cabe na palma da mão.
Eu queria ser mais pra eles,
porque sei que, no fundo, quem deveria ser por eles
apenas quer ser um pouco mais que o outro que deveria ser por

eles.
E isso é pouco demais para o tanto tanto tanto que eles

realmente merecem.

Mas existem os outros dias.
Os dias em que eu queria fugir deles.
Sumir.
Desaparecer.
Esquecer.
Então entendo que não é deles que quero sumir,
é da origem deles.

Um eu neguei ser padrinho,
por não querer ver uma criança sobre meus cuidados,
ser batizada numa igreja que permite padres estuprarem crianças

sobre seus cuidados.
A outra eu vi negarem a existência fetal com total cara de pau,
e nascer no chão da sala, como se não fosse nada,
"tem um treco saindo de mim", sempre lembrarei essa fala,
e que se não fosse por mim, não respirava,
seria mais um número na história de quem gritava.
Mais um, porque seria o segundo caso.

E eu ainda só não dei fim nisso tudo por conta Dela.
Se eu não soubesse que logo me faria casado,
se eu não tivesse alguém como Ela do meu lado,
eu nem estaria aqui pra esse desabafo.

Fico cá pensando, eu com meus 33 anos
sem vontade de quase nada, sem ter emprego e me embriagando,
que, talvez, tenha sido a desilusão no mundo
que levou, 1985 anos atrás, o ícone do cristianismo,
ciente de tudo (já que deus) que se fazia contra ele,
deixar com que as peças se movessem,
e que o julgamento viesse,
que a condenação sobreviesse,
e que sua morte se cumprisse.

Talvez ele já estivesse cansado demais, como eu.

Mas, para o azar de meu parceiro de idade,
não foi dado a ele o direito de amar alguém.
E ele morreu sozinho, na sua cruz, agonizando por toda a

humanidade.
Eu também me importo com a humanidade,
mas não morreria por ela.
Ela é diversa demais, com gente perversa demais,
para que eu pudesse morrer por todo mundo.
Eu não sou tão inocente assim.
Se eu for morrer,
eu vou morrer por mim.

Mas não ainda aos 33.

14 de setembro de 2018

Nenhum comentário:

Postar um comentário